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CARLOS HEITOR CONY
Maura Lopes Cançado
Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel
SINCERAMENTE, NÃO fiquei surpreendido. Em 2003, quando
fazia uma série de palestras na
Sorbonne (Nantes, Lyon, Rennes e
Paris), um jovem professor pediu-me para falar sobre Maura Lopes
Cançado, cujo livro "O Hospício
É Deus" estava estudando para
uma tese de doutorado na própria
Sorbonne.
Ele sentia dificuldade em encontrar material crítico e biográfico sobre a autora, sabia vagamente que
eu fora seu amigo -estava citado
no livro- e guardara uma crônica
que eu publicara na Ilustrada há
tempos, falando de Maura e um
pouco de sua personalidade humana e literária.
Passa o tempo e recebo, no último sábado, a visita de uma aluna
que a escolheu como tema de sua
tese de mestrado na PUC-Rio. Forçando a memória, lembro que, no
passado, estudantes de faculdades
espalhadas pelo Brasil já me haviam escrito pedindo informações
sobre Maura, que também tem outro livro publicado ("O Sofredor do
Ver") e uma série de contos no "Suplemento Dominical" do "Jornal
do Brasil", no final dos anos 50.
É um fato mais ou menos comum em todas as literaturas: escritores de talento, alguns beirando a
genialidade, passam desapercebidos por seus contemporâneos e somente aos poucos vão conquistando espaço entre os estudiosos fatigados de analisar as obras já exaustivamente analisadas pela massa
crítica que se forma nas academias,
nas editoras e na mídia.
Temos alguns exemplos entre
nós -e o de Maura me parece o
mais recente e emblemático. Morreu há pouco, esquecida e conformada, aparentemente curada da
loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas
psiquiátricas. Não mais escrevia,
não procurava ninguém e por ninguém era procurada, a não ser por
seu filho, Cesarion Praxedes, que
morreu dois anos atrás.
Naqueles anos, eu também colaborava no "SDJB" e freqüentava o
andar ocupado pelo suplemento,
cuja fauna está toda citada nos livros de Maura: Reynaldo Jardim,
Ferreira Gullar, Assis Brasil, Mário
Faustino, José Guilherme Merquior, Carlos Fernando Fortes Almeida, José Louzeiro, Alaôr Barbosa, Walmir Ayala, Barreto Borges, Oliveira Bastos e outros que
agora não lembro.
Reynaldo Jardim foi o criador e
era o editor do "SDJB", recebeu
um conto de Maura e ficou entusiasmado, publicou-o na primeira
página, na diagramação competente de Amílcar de Castro.
Foi o início de uma série de contos magistrais; falou-se em Katherine Mansfield, em Mary
McCarthy e, principalmente, em
Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. Estava longe de
ser uma imitadora. Seu universo
era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura.
Eu havia estreado na literatura
em 1958, e Maura me procurou,
dizendo que desejava escrever
um romance. Tirei o corpo fora,
não se ensina ninguém a escrever
um romance, um ensaio, uma poesia. Ajudei-a apenas materialmente, dando-lhe uma máquina de escrever. O resultado foi "O Hospício
É Deus".
Não se trata de um desabafo. Mas
de um mergulho complicado no
seu universo interior, quando a
matéria da carne se decompõe antes da morte, e sobra apenas a convulsão, "a noite escura da alma"
(Maura nunca leu São João da
Cruz). Convulsão que ela experimentou fisicamente na série de
eletrochoques, nos acessos de cólera contra o mundo e contra a humanidade.
Em duas de suas crises mais violentas, matou uma enfermeira e
um namorado, cumpriu pena em
presídios psiquiátricos, foi libera-
da por parecer de médicos que
a examinaram e por juízes que
absolveram.
Era doce quando superava a loucura, amante, querendo aprender
tudo para melhor desprezar o
mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se
Maura acreditasse nela mesma e
na própria literatura. Lia pouco,
observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima.
Adolescente em Minas, ganhou
um avião de seu pai, pilotava bem,
batizou o aparelho com o nome de
seu filho, Cesarion. Um acidente
cortou a sua carreira -aliás, ela
nunca pensou numa carreira, queria apenas ser ela mesma, com as
suas manias, o seu sofrimento de
ver o mundo e as coisas, a sua loucura, o seu deus.
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