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CONTARDO CALLIGARIS
Melancolia moral
Nossa cultura sofre aparentemente de melancolia moral. Não
paramos de lamentar a falta (ou a
perda) de valores, princípios e critérios morais. A esquerda diz:
"Não há mais solidariedade!". A
direita, "não há mais respeito!".
Juntos, assumimos: "Perdemos a
moral e a vergonha na cara!".
Como também possuímos uma
confiança pedagógica infinita, é
normal que surja a idéia de ensinar valores morais a crianças e jovens -para assim preparar um
mundo melhor.
A Universidade de Brown é
uma instituição laica e um dos
centros de ensino mais liberais
dos EUA. Ora, a Brown acaba de
anunciar a instituição de um curso de valores, que começará em
setembro e será uma parte obrigatória do currículo do College.
Na conferência que introduziu o
novo curso, Nancy Rosenblum,
professora responsável pelo projeto, foi extremamente cautelosa,
salientando a necessidade de inventar um jeito de ensinar valores
morais que evite impor valores
universais e não comprometa a
pluralidade e a diversidade de
culturas, orientações etc. Boa sorte para o curso. Mas duvido que
tenha os efeitos esperados.
Na maioria dos países ocidentais laicos e democráticos, fora as
escolas confessionais, não se ensinam valores. No máximo, ensinam-se as regras de boa convivência social. No Brasil havia a educação moral e cívica, na época da
ditadura -que, como todos regimes totalitários, pensava possuir
a árvore do bem e do mal. Hoje, só
sobram os estudos sociais.
Em geral, a modernidade laica
desistiu do ensino normativo de
princípios morais e preferiu promover as virtudes e regras democráticas básicas. Entre estas, suma
virtude: a tolerância das diferenças e sua paridade social e política.
A idéia de fato funcionou. No
mundo ocidental, nas últimas décadas, demos uma extraordinária
guinada tolerante.
No caso dos Estados Unidos, o
sociólogo Alan Wolfe publicou recentemente uma pesquisa sobre a
ideologia da classe média norte-americana ("One Nation After
All", Viking, 1998). Conclusão: os
norte-americanos de hoje são
mais tolerantes do que nunca. E a
constatação pode ser globalizada.
Não estranhem se um maluco
decide passar de carro atirando
em negros e coreanos. Ou se outros de repente crucificam um homossexual. Ou ainda se de vez em
quando alguns franceses jogam
um árabe do trem. Na verdade (e
sem ironia) estas são confirmações indiretas do triunfo do espírito de tolerância. Pois o ódio do
que é diferente se torna tão mais
violento quanto mais se afirma a
idéia de paridade entre os homens. A convivência com a diferença é mais tranquila quando a
vida social pode ser segregada, ou
quando é instituída uma diferença de direitos.
Um dos segredos do caráter
não-extremo do racismo no Brasil
é que as diferenças sociais aqui
são segregativas. Não há porque
discriminar quem já pertence a
outro mundo.
Pois bem, a tolerância como valor moral dominante é uma coisa
bonita. Por que então nossa melancolia moral? Ser tolerante não
é moral suficiente?
Acontece que uma sociedade
perfeitamente tolerante se torna
ingovernável, pois nela se torna
difícil julgar, punir, reprimir (e
educar, pois não há educação sem
diferença e hierarquia).
Ou seja, não há infratores. Só há
diferentes. Quem lançará a famosa pedra?
Há também outra razão, mais
fundamental, para que a tolerância -nossa virtude suprema-
seja paradoxalmente o toque fúnebre da moral.
Afinal, os princípios morais precisam de autoridade. Esta pode
vir de algum agente acima de todos (Deus ou a natureza) ou então do consenso entre nós.
É uma grande novidade moderna que a fonte da autoridade moral seja o consenso entre os humanos, e não mais Deus.
Poderia funcionar, à condição
que aceitássemos viver em uma
sociedade massificada, um tanto
bovina e pouco heróica, onde
compartilharíamos princípios
morais banais, simples e de bom
senso.
Ora, desde os anos 50 o mercado
exige uma diversificação máxima
do consumo, que assim garanta a
continuação indefinida da produção. Que cada um consuma diferente, seja diferente e -melhor
ainda- tenha de ser diferente.
Sem isso, um dia ou outro, haveria risco de saturação, todos possuindo, felizes, os mesmos bens.
A massa, em suma, era ruim para o futuro do liberalismo. Os
anos 60 se encarregaram de criticar a sociedade de massa e de promover a beleza das diferenças respeitadas. Tarefa nobre e democrática.
Mas, com isso, a própria idéia
de consenso teve conotação negativa. Ficamos, em matéria de autoridade, sem Deus e detestando
os grandes consensos. Só sobrou
uma virtude ética pouco prática:
a tolerância.
Nossa melancolia é mais séria
do que pode parecer. Pois, na verdade, não lamentamos a perda
dos antigos (ou não) valores e
princípios morais. O que perdemos foi, por um lado, a fonte antiga da autoridade destes princípios: o que tradicionalmente se
chama um "Pai". Por outro lado,
também perdemos o gosto do coletivo: ojerizamos a massa -que
seria a possível fonte moderna de
uma autoridade moral. Preferimos ser diferentes de todos nossos
semelhantes. E, naturalmente,
chorar a moral derramada.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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