São Paulo, Quinta-feira, 15 de Julho de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
Melancolia moral

Nossa cultura sofre aparentemente de melancolia moral. Não paramos de lamentar a falta (ou a perda) de valores, princípios e critérios morais. A esquerda diz: "Não há mais solidariedade!". A direita, "não há mais respeito!". Juntos, assumimos: "Perdemos a moral e a vergonha na cara!".
Como também possuímos uma confiança pedagógica infinita, é normal que surja a idéia de ensinar valores morais a crianças e jovens -para assim preparar um mundo melhor.
A Universidade de Brown é uma instituição laica e um dos centros de ensino mais liberais dos EUA. Ora, a Brown acaba de anunciar a instituição de um curso de valores, que começará em setembro e será uma parte obrigatória do currículo do College.
Na conferência que introduziu o novo curso, Nancy Rosenblum, professora responsável pelo projeto, foi extremamente cautelosa, salientando a necessidade de inventar um jeito de ensinar valores morais que evite impor valores universais e não comprometa a pluralidade e a diversidade de culturas, orientações etc. Boa sorte para o curso. Mas duvido que tenha os efeitos esperados.
Na maioria dos países ocidentais laicos e democráticos, fora as escolas confessionais, não se ensinam valores. No máximo, ensinam-se as regras de boa convivência social. No Brasil havia a educação moral e cívica, na época da ditadura -que, como todos regimes totalitários, pensava possuir a árvore do bem e do mal. Hoje, só sobram os estudos sociais.
Em geral, a modernidade laica desistiu do ensino normativo de princípios morais e preferiu promover as virtudes e regras democráticas básicas. Entre estas, suma virtude: a tolerância das diferenças e sua paridade social e política.
A idéia de fato funcionou. No mundo ocidental, nas últimas décadas, demos uma extraordinária guinada tolerante.
No caso dos Estados Unidos, o sociólogo Alan Wolfe publicou recentemente uma pesquisa sobre a ideologia da classe média norte-americana ("One Nation After All", Viking, 1998). Conclusão: os norte-americanos de hoje são mais tolerantes do que nunca. E a constatação pode ser globalizada.
Não estranhem se um maluco decide passar de carro atirando em negros e coreanos. Ou se outros de repente crucificam um homossexual. Ou ainda se de vez em quando alguns franceses jogam um árabe do trem. Na verdade (e sem ironia) estas são confirmações indiretas do triunfo do espírito de tolerância. Pois o ódio do que é diferente se torna tão mais violento quanto mais se afirma a idéia de paridade entre os homens. A convivência com a diferença é mais tranquila quando a vida social pode ser segregada, ou quando é instituída uma diferença de direitos.
Um dos segredos do caráter não-extremo do racismo no Brasil é que as diferenças sociais aqui são segregativas. Não há porque discriminar quem já pertence a outro mundo.
Pois bem, a tolerância como valor moral dominante é uma coisa bonita. Por que então nossa melancolia moral? Ser tolerante não é moral suficiente?
Acontece que uma sociedade perfeitamente tolerante se torna ingovernável, pois nela se torna difícil julgar, punir, reprimir (e educar, pois não há educação sem diferença e hierarquia).
Ou seja, não há infratores. Só há diferentes. Quem lançará a famosa pedra?
Há também outra razão, mais fundamental, para que a tolerância -nossa virtude suprema- seja paradoxalmente o toque fúnebre da moral.
Afinal, os princípios morais precisam de autoridade. Esta pode vir de algum agente acima de todos (Deus ou a natureza) ou então do consenso entre nós.
É uma grande novidade moderna que a fonte da autoridade moral seja o consenso entre os humanos, e não mais Deus.
Poderia funcionar, à condição que aceitássemos viver em uma sociedade massificada, um tanto bovina e pouco heróica, onde compartilharíamos princípios morais banais, simples e de bom senso.
Ora, desde os anos 50 o mercado exige uma diversificação máxima do consumo, que assim garanta a continuação indefinida da produção. Que cada um consuma diferente, seja diferente e -melhor ainda- tenha de ser diferente. Sem isso, um dia ou outro, haveria risco de saturação, todos possuindo, felizes, os mesmos bens.
A massa, em suma, era ruim para o futuro do liberalismo. Os anos 60 se encarregaram de criticar a sociedade de massa e de promover a beleza das diferenças respeitadas. Tarefa nobre e democrática.
Mas, com isso, a própria idéia de consenso teve conotação negativa. Ficamos, em matéria de autoridade, sem Deus e detestando os grandes consensos. Só sobrou uma virtude ética pouco prática: a tolerância.
Nossa melancolia é mais séria do que pode parecer. Pois, na verdade, não lamentamos a perda dos antigos (ou não) valores e princípios morais. O que perdemos foi, por um lado, a fonte antiga da autoridade destes princípios: o que tradicionalmente se chama um "Pai". Por outro lado, também perdemos o gosto do coletivo: ojerizamos a massa -que seria a possível fonte moderna de uma autoridade moral. Preferimos ser diferentes de todos nossos semelhantes. E, naturalmente, chorar a moral derramada.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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