|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
A psicologia forense, a origem do mal e a culpa dos outros
Desde o começo dos anos 90,
nos EUA, há uma proliferação de romances cujos heróis são
psicólogos ou psiquiatras forenses. Os leitores de histórias policiais conhecem os protagonistas
clássicos: o detetive que leva e dá
pauladas até que as coisas se esclareçam (estilo Mickey Spillane),
o advogado de defesa à Perry Mason e o investigador que pensa e
computa (uma tradição que vai
dos contos de Edgar Poe até Nero
Wolfe, passando por Sherlock
Holmes). A eles acrescenta-se, hoje, uma nova figura: o "profiler",
o clínico que lê no crime a dinâmica exclusiva de uma mente criminosa.
Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária
da questão da origem do mal: é
muita honra. Mas é também uma
armadilha que funciona assim.
Acho que entendo a angústia e a
depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o
que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não
consigo vislumbrar. E gostaria
que a psicologia me explicasse
-não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da
nova onda de romances policiais
me dirão as razões pelas quais os
monstros torturam, amputam,
sangram e estupram. Com isso,
confirmarão que eu não tenho
nada a ver com isso.
Estamos no ápice da confiança
concedida à psicologia clínica,
que deve nos dizer de onde vem a
maldade. Mas estamos também
no ápice da negação do aporte
mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio,
não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem
normal. Ou seja, a psicologia diz
que compartilhamos os mesmos
monstros com o criminoso e o
maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas.
Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.
Há exceções a essa regra. Um
psiquiatra forense (de verdade),
Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente
ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica.
O herói é Frank Clevenger, um
psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem
entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos
de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e
alcoólatra em recuperação, sabe
que o mal é compreendido só por
quem não hesita em olhar dentro
de si.
Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal
que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde
adivinhar quem era o monstro
que Clarice estava procurando.
Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua
loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma
mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da
idéia de que o mal é reciclado. Ou
seja, tanto o sofrimento neurótico
quanto a violência desinibida e
criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.
Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um
trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás
de cada sofrimento, estranheza
ou malvadez, deve haver alguma
ofensa passada. Nossos sintomas
e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que
foram pouco ofendidos sofrem da
reminiscência da injúria passada
e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da
qual já foram vítimas. Fomos
maltratados quando crianças.
Por isso temos medo do escuro ou
então cortamos a garganta da vizinha.
Ora, de tudo que aprendi em
minha formação clínica, há uma
regra que se verifica a cada vez:
nossos males são efeitos de nossas
interpretações (mais ou menos
capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós.
Não são consequências diretas
das ações dos outros.
Por isso é possível mudar. Por
isso o passado não constitui propriamente um destino: porque
nunca somos apenas o efeito dos
abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido
e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou
uma vida consagrada a lamber
nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.
Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei
pouco tempo atrás, no norte rural
do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as
mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para
culpá-los".
P.S.: Muitos "psicopoliciais" são
acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo
Alex Cross, doutor em psicologia,
foi levado para o cinema por
Morgan Freeman, em "Beijos que
Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo
Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por
Stephen White, e as de Lincoln
Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa
leitura.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Crítica: "Dois Perdidos" dilui tensão de Plínio Marcos Próximo Texto: Teatro: Criaturas rebeldes Índice
|