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MARCELO COELHO
De Picasso a Macunaíma
Uma elite afunda quando não tem mais condições de apresentar um projeto para a sociedade
DANIEL Ferrante é doutor em
física e mora nos Estados
Unidos há sete anos. É especialista em partículas elementares,
faz o pós-doutorado na Brown University e anda pensando em voltar
para o Brasil.
Será uma boa idéia? Ele resolve
pedir a opinião de um especialista
na realidade brasileira, que é também professor na sua universidade.
O professor não lhe dá uma resposta
taxativa.
Afinal, é sempre difícil dar opiniões sobre o que os outros devem
fazer de seu próprio futuro. Só é fácil
dar conselhos a quem não os solicita.
Mas, para o nosso professor, a tarefa
traz dificuldades adicionais. Pois
não se trata de um sociólogo qualquer: quem conversa com o jovem
físico é o ex-presidente da República
Fernando Henrique Cardoso.
Não se pode dizer que ele esteja
otimista com relação ao Brasil. Algumas opiniões de Fernando Henrique são bastante sombrias, a julgar
pelo interessante relato de João Moreira Salles, publicado na edição de
agosto da revista "Piauí".
Moreira Salles acompanhou Fernando Henrique numa "turnê" internacional de palestras, reuniões e
entrevistas, de Rhode Island, onde
fica a Universidade Brown, a Madri,
cidade-sede de um clube mundial de
ex-governantes.
Enfrentando apertos na classe turística e péssima comida de lanchonete, Fernando Henrique não perde
o bom humor. Gosta de se mostrar
preocupado com o próprio orçamento, aceita com naturalidade a
condição de brasileiro anônimo na
maior parte do tempo; é uma figura,
digamos, de segundo time num circuito de palestras em que Bill Clinton pode ganhar até US$ 150 mil de
uma tacada. "Em média, me oferecem US$ 40 mil", diz FHC.
Fernando Henrique não é Bill
Clinton, mas também o Brasil não é
os Estados Unidos. E não será tampouco uma China ou uma Índia,
acrescenta o ex-presidente.
"Que ninguém se engane", diz. "O
Brasil é isso mesmo que está aí. A
saúde melhorou, a educação também, e aos poucos a infra-estrutura
se acertará. Mas não haverá nenhum espetáculo de crescimento.
(...) Continuaremos nessa falta de
entusiasmo, nesse desânimo."
E põe desânimo nisso. "No meu
governo, universalizamos o acesso à
escola, mas para quê? O que se ensina ali é um desastre."
Projeto nacional? Foi-se o tempo,
constata. "Quais são as instituições
que dão coesão a uma sociedade?
Família, religião, partidos, escola.
No Brasil, tudo isso fracassou. (...)
Em que momento nos sentimos
uma coisa só, uma nação? Talvez só
no futebol. O Carnaval é uma celebração. A parada de 7 de Setembro é
uma palhaçada."
Parece amargo, mas, entre o diagnóstico dramático do ex-presidente
e o seu estado de humor subjetivo,
há um descompasso que é visível na
reportagem. FHC está espirituoso e
lampeiro como nunca. "É bom ser
brasileiro", observa, numa concorrida reunião internacional. "Ninguém
dá bola."
Em Madri, ele encontra um tempo para ver uns quadros de Picasso.
Ao seu lado, dona Ruth reprova uma
tela excessivamente neoclássica,
conservadora demais. Fernando
Henrique brinca: "É gênio, Ruth.
Faz de tudo". E acrescenta: "Aliás,
eu me identifico muito com
Picasso".
Tudo bem, é uma "boutade". Em
todo caso, "fazer de tudo" pode ser
tanto uma qualidade quanto um defeito. Identificando-se com o mestre
cubista, Fernando Henrique não
perdoa o seu sucessor, a quem chama de "Macunaíma". Trata-se daquele "brasileiro sem caráter, que se
acomoda", que "gosta do poder, da
vida boa". Nada de pejorativo nisso,
observa o repórter.
É que entre Picasso e Macunaíma,
afinal, dá no mesmo; muda apenas o
sujeito do enunciado. Fernando
Henrique passa da primeira pessoa
para a terceira, mas o tom é mais de
complacência que de acusação.
Para voltar ao tema das "elites".
Há graus variados de decência, há
graus variados de deboche e de cinismo nos que pertencem aos círculos do poder. Mas o cinismo, "heavy"
ou "light", tende a prevalecer, e
transparece em quase toda parte,
por uma razão bem simples.
Não é "falta de moral", porque isso
pode ocorrer nos melhores gabinetes. Uma elite afunda, creio, quando
não mais tem condições de apresentar um projeto para a sociedade. A
fraqueza da oposição está no fato de
que não tem projeto diferente do de
Lula, que, por sua vez, pensava ter
um, mas já o perdeu pelo caminho.
Os dois, Lula e FHC, só não perdem
o bom humor.
coelhofsp@uol.com.br
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