São Paulo, quarta-feira, 15 de agosto de 2007

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MARCELO COELHO

De Picasso a Macunaíma

Uma elite afunda quando não tem mais condições de apresentar um projeto para a sociedade

DANIEL Ferrante é doutor em física e mora nos Estados Unidos há sete anos. É especialista em partículas elementares, faz o pós-doutorado na Brown University e anda pensando em voltar para o Brasil.
Será uma boa idéia? Ele resolve pedir a opinião de um especialista na realidade brasileira, que é também professor na sua universidade. O professor não lhe dá uma resposta taxativa.
Afinal, é sempre difícil dar opiniões sobre o que os outros devem fazer de seu próprio futuro. Só é fácil dar conselhos a quem não os solicita.
Mas, para o nosso professor, a tarefa traz dificuldades adicionais. Pois não se trata de um sociólogo qualquer: quem conversa com o jovem físico é o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
Não se pode dizer que ele esteja otimista com relação ao Brasil. Algumas opiniões de Fernando Henrique são bastante sombrias, a julgar pelo interessante relato de João Moreira Salles, publicado na edição de agosto da revista "Piauí".
Moreira Salles acompanhou Fernando Henrique numa "turnê" internacional de palestras, reuniões e entrevistas, de Rhode Island, onde fica a Universidade Brown, a Madri, cidade-sede de um clube mundial de ex-governantes.
Enfrentando apertos na classe turística e péssima comida de lanchonete, Fernando Henrique não perde o bom humor. Gosta de se mostrar preocupado com o próprio orçamento, aceita com naturalidade a condição de brasileiro anônimo na maior parte do tempo; é uma figura, digamos, de segundo time num circuito de palestras em que Bill Clinton pode ganhar até US$ 150 mil de uma tacada. "Em média, me oferecem US$ 40 mil", diz FHC.
Fernando Henrique não é Bill Clinton, mas também o Brasil não é os Estados Unidos. E não será tampouco uma China ou uma Índia, acrescenta o ex-presidente. "Que ninguém se engane", diz. "O Brasil é isso mesmo que está aí. A saúde melhorou, a educação também, e aos poucos a infra-estrutura se acertará. Mas não haverá nenhum espetáculo de crescimento.
(...) Continuaremos nessa falta de entusiasmo, nesse desânimo." E põe desânimo nisso. "No meu governo, universalizamos o acesso à escola, mas para quê? O que se ensina ali é um desastre."
Projeto nacional? Foi-se o tempo, constata. "Quais são as instituições que dão coesão a uma sociedade? Família, religião, partidos, escola. No Brasil, tudo isso fracassou. (...)
Em que momento nos sentimos uma coisa só, uma nação? Talvez só no futebol. O Carnaval é uma celebração. A parada de 7 de Setembro é uma palhaçada."
Parece amargo, mas, entre o diagnóstico dramático do ex-presidente e o seu estado de humor subjetivo, há um descompasso que é visível na reportagem. FHC está espirituoso e lampeiro como nunca. "É bom ser brasileiro", observa, numa concorrida reunião internacional. "Ninguém dá bola."
Em Madri, ele encontra um tempo para ver uns quadros de Picasso. Ao seu lado, dona Ruth reprova uma tela excessivamente neoclássica, conservadora demais. Fernando Henrique brinca: "É gênio, Ruth. Faz de tudo". E acrescenta: "Aliás, eu me identifico muito com Picasso".
Tudo bem, é uma "boutade". Em todo caso, "fazer de tudo" pode ser tanto uma qualidade quanto um defeito. Identificando-se com o mestre cubista, Fernando Henrique não perdoa o seu sucessor, a quem chama de "Macunaíma". Trata-se daquele "brasileiro sem caráter, que se acomoda", que "gosta do poder, da vida boa". Nada de pejorativo nisso, observa o repórter.
É que entre Picasso e Macunaíma, afinal, dá no mesmo; muda apenas o sujeito do enunciado. Fernando Henrique passa da primeira pessoa para a terceira, mas o tom é mais de complacência que de acusação.
Para voltar ao tema das "elites". Há graus variados de decência, há graus variados de deboche e de cinismo nos que pertencem aos círculos do poder. Mas o cinismo, "heavy" ou "light", tende a prevalecer, e transparece em quase toda parte, por uma razão bem simples.
Não é "falta de moral", porque isso pode ocorrer nos melhores gabinetes. Uma elite afunda, creio, quando não mais tem condições de apresentar um projeto para a sociedade. A fraqueza da oposição está no fato de que não tem projeto diferente do de Lula, que, por sua vez, pensava ter um, mas já o perdeu pelo caminho. Os dois, Lula e FHC, só não perdem o bom humor.


coelhofsp@uol.com.br

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