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ANÁLISE
Afinal, de onde vem a onda?
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A Onda" visa mostrar que
transformar uma classe de alunos adolescentes em grupo organizado com práticas totalitárias não é algo assim tão complicado. Baseado em fato real
que ocorreu em uma escola
norte-americana nos anos 60, o
filme transplanta a situação para a Alemanha contemporânea.
O resultado diz muito a respeito da maneira que gostaríamos de ver o totalitarismo.
Pois, por mais que ele se esforce
em defender a tese interessante de que práticas autocráticas
são um fantasma a rondar nossas sociedades, o filme é estranhamente conservador na maneira de definir de onde vêm
tais fantasmas.
Por exemplo, a julgar pelo filme, uma ditadura é necessariamente baseada na crítica do individualismo e no elogio da
uniformidade. Como se nossa
democracia estivesse segura lá
onde o individualismo imperasse. No entanto, não foram
poucos aqueles que, no século
20, insistiram que o indivíduo
moderno é, na verdade, produzido através da internalização
de profundos processos disciplinares e repressivos.
A boa questão é: com o que
preciso me conformar para poder ser reconhecido como indivíduo dotado de interesses
"próprios"? Por serem sensíveis a tal questão, Freud, Adorno, Foucault e vários outros
lembraram que o autoritarismo não é apenas uma tendência que aparece quando a individualidade é dissolvida, mas
está inscrita na própria estrutura dos indivíduos modernos.
O filme, por sua vez, insiste
na ideia clássica de que situações de anomia, famílias desagregadas e crise econômica são
o terreno fértil para ditaduras.
Um pouco como quem diz: lá
onde a família, a prosperidade e
a crença na lei não funcionam
bem, lá onde os esteios do indivíduo entram em colapso, a voz
sedutora dos discursos totalitários está à espreita. No entanto,
se realmente quisermos pensar
a extensão do totalitarismo, seria interessante perguntar por
que personalidades autoritárias aparecem também em famílias muito bem ajustadas e
sólidas, em sujeitos muito bem
adaptados a nossas sociedades
e a nosso padrão de prosperidade. Teríamos surpresas interessantes se estudássemos o
perfil psicológico destes que
atualmente votam em governos que criam sistemas globais
de fichamento e controle de populações, rondas contra imigrantes, alimentam a xenofobia
e a lógica da fronteira.
Da mesma forma, nada entenderemos sobre democracia
se formos incapazes de compreender como "igualdade" foi
uma palavra-chave para fazer
de nossas sociedades algo um
pouco menos injusto e mais
aberto a diferenças. Mas o filme
tem essa estranha tendência
em confundir exigências de
igualdade e demandas de uniformidade. Talvez porque ele
queira nos fazer acreditar que
há uma onda vinda de um lado,
isto enquanto ela está chegando do outro.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP.
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