São Paulo, sábado, 15 de agosto de 2009

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ANÁLISE

Afinal, de onde vem a onda?

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Onda" visa mostrar que transformar uma classe de alunos adolescentes em grupo organizado com práticas totalitárias não é algo assim tão complicado. Baseado em fato real que ocorreu em uma escola norte-americana nos anos 60, o filme transplanta a situação para a Alemanha contemporânea.
O resultado diz muito a respeito da maneira que gostaríamos de ver o totalitarismo.
Pois, por mais que ele se esforce em defender a tese interessante de que práticas autocráticas são um fantasma a rondar nossas sociedades, o filme é estranhamente conservador na maneira de definir de onde vêm tais fantasmas.
Por exemplo, a julgar pelo filme, uma ditadura é necessariamente baseada na crítica do individualismo e no elogio da uniformidade. Como se nossa democracia estivesse segura lá onde o individualismo imperasse. No entanto, não foram poucos aqueles que, no século 20, insistiram que o indivíduo moderno é, na verdade, produzido através da internalização de profundos processos disciplinares e repressivos.
A boa questão é: com o que preciso me conformar para poder ser reconhecido como indivíduo dotado de interesses "próprios"? Por serem sensíveis a tal questão, Freud, Adorno, Foucault e vários outros lembraram que o autoritarismo não é apenas uma tendência que aparece quando a individualidade é dissolvida, mas está inscrita na própria estrutura dos indivíduos modernos.
O filme, por sua vez, insiste na ideia clássica de que situações de anomia, famílias desagregadas e crise econômica são o terreno fértil para ditaduras.
Um pouco como quem diz: lá onde a família, a prosperidade e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do indivíduo entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita. No entanto, se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, seria interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas sociedades e a nosso padrão de prosperidade. Teríamos surpresas interessantes se estudássemos o perfil psicológico destes que atualmente votam em governos que criam sistemas globais de fichamento e controle de populações, rondas contra imigrantes, alimentam a xenofobia e a lógica da fronteira.
Da mesma forma, nada entenderemos sobre democracia se formos incapazes de compreender como "igualdade" foi uma palavra-chave para fazer de nossas sociedades algo um pouco menos injusto e mais aberto a diferenças. Mas o filme tem essa estranha tendência em confundir exigências de igualdade e demandas de uniformidade. Talvez porque ele queira nos fazer acreditar que há uma onda vinda de um lado, isto enquanto ela está chegando do outro.


VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP.


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