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"Joyce" é
boa foto
do artista
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Para que serve a biografia de
um escritor? No caso de James
Joyce -aliás, como no de tantos
outros grandes nomes da literatura- parece servir antes de mais
nada para mostrar aos leitores desavisados o inferno que pode ser a
vida de um autor literário.
É difícil imaginar outra obra cuja potência jubilosa da vida ali representada seja tão inversamente
proporcional às dificuldades (financeiras, de saúde etc.) sofridas
pelo autor, a se julgar ao menos
pela pequena biografia escrita por
Edna O'Brien sobre Joyce. Ninguém faz, por exemplo, para tomar uma obra cuja potência criadora poderia ser equiparada à do
escritor irlandês, uma imagem
muito infeliz de Shakespeare.
O grande biógrafo de Joyce, Richard Ellmann (autor de "James
Joyce", ed. Globo), define a vida
do autor de "Ulisses" como uma
incessante passagem de "uma crise a outra, de uma exacerbação a
outra". Joyce comeu o pão que o
diabo amassou e, ainda assim, escreveu uma das obras mais extraordinárias do século, sempre
endividado e vendo os livros várias vezes recusados ou censurados antes de ser devidamente reconhecido.
Para culminar, acabou morrendo refugiado na Suíça, praticamente cego, separado da filha esquizofrênica que ele adorava e
que ficou internada num hospício
na França sem poder deixar o país
recém-ocupado pelos alemães.
Para os resenhistas, as biografias literárias servem ainda -e
não é desprezível essa sua utilidade- para que possam rechear
seus artigos com fatos da vida do
escritor, que reproduzem pela
simples paráfrase, sem que tenham de se dar ao trabalho de
pesquisa ou reportagem. Isso deve explicar em parte a simpatia
com que, em geral, as biografias
são recebidas na mídia.
A de Edna O'Brien -que, como
seu biografado e mais célebre
conterrâneo, também teve alguns
de seus livros censurados pelo
moralismo católico da Irlanda-
tem um caráter claramente introdutório e despretensioso, e não
apenas pela sua brevidade.
A autora não faz cerimônia em
citar a biografia de Ellmann sempre que precisa, reconhecendo-lhe humildemente a preponderância como referência obrigatória, e também não mede parágrafos quando se trata de fazer as sinopses de "Ulisses" e "Finnegans
Wake", dirigindo-se aos que não
só nunca leram a obra mas podem, uma vez conhecendo o resumo do enredo, vencer as dificuldades iniciais de leitura.
O "James Joyce" de O'Brien é,
portanto, uma biografia quase escolar, de índole educativa e didática, apesar de ter optado por
omitir as datas como pontos de
referência cronológica em vários
momentos em que essa informação seria crucial ao longo do texto, provavelmente em nome de
uma maior elegância estilística.
Eventualmente, O'Brien também incorre em certos artifícios
típicos do estilo florido de biógrafos com pretensões literárias, que
ela não precisaria ter, sendo autora de uma obra ficcional de reconhecida qualidade. Embora raras,
há frases do tipo: "O jovem reconhecia que a família era um ninho
do qual devia voar" ou "Uma fera
murmurava palavras que ele ainda não entendia" ou "O fato de
Joyce ter-se elevado acima de tantos mal-entendidos é sem dúvida
um testamento àqueles olhos feridos e ao Espírito Santo naquele
tinteiro".
A arte da biografia nada mais é
do que tornar narrativa a vida dos
outros -que de narrativa não
tem nada-, dando-lhe uma lógica e uma coerência, o que pressupõe não só a escolha de um ponto
de vista em detrimento de outros,
mas a própria invenção de uma
unidade que provavelmente nunca existiu.
A biografia é uma forma de sistematizar as informações disseminadas pela obra e pelos documentos em torno do autor, fazendo do biógrafo um bibliotecário
muitas vezes com pretensões de
estilo literário em suas fichas.
O'Brien consegue no geral evitar a maioria desses cacoetes. Sua
biografia de Joyce é simpática em
suas ambições simplesmente introdutórias, um retrato do artista
como um triunfo da vontade,
obstinado em criar uma das obras
mais geniais de toda a história da
literatura, a despeito de Deus e de
todas as dificuldades físicas e materiais que lhe reservou o destino.
Avaliação:
Livro: James Joyce
Autor: Edna O'Brien
Tradução: Marcos Santarrita
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