São Paulo, sexta-feira, 15 de outubro de 2004

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ERUDITO

Dignidades da música contra a garoa e o zero a zero

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A "Arabesque" foi um mau começo, mas os "Études-Tableaux" terminaram bem o concerto do pianista russo Dmitri Alexeyev, quarta, no BankBoston Hall. Entre Schumann e Rachmaninov, ele tocou Chopin, para a platéia que enfrentou garoa, trânsito e a consciência da seleção brasileira em campo para ouvir música nos confins da zona sul.
Por que não se tocam os "Estudos Sinfônicos" de Schumann (1810-56) com mais freqüência, não dá para entender. Talvez pela dificuldade -mas isso valeria também para as peças que são mais tocadas, então não serve de argumento. A sedução de outras composições, como a "Fantasia", a "Kreisleriana" ou o "Carnaval", justifica a escolha dessas, mas não explica a rejeição dos "Estudos".
O gênero, quem sabe? Os "Estudos" são tanto estudos (exploração do instrumento e da arte de tocar) quanto variações (exploração da arte de compor). Quer dizer: um artesanato da música, exercícios de tirar o mundo de grãos de areia. Música de músicos para músicos.
Escritos, em sua maior parte, em 1834-35, os "Estudos Sinfônicos" anunciam muito do que Schumann faria depois de mais seu: repetições inusitadas, ritmos polifônicos, fora de fase uns com os outros, aparições súbitas de vozes, aparentemente saídas de lugar nenhum. Todo um teatro de sugestões e saudades, ânsias e nostalgias, que essa música inventou como se estivesse só revelando o que já é. O "Finale" conjuga tudo numa peça de bravura, avassaladora não apenas pelo volume, mas por uma potência lírica que soa, afinal, mais forte ainda.
Ou poderia soar. Mas dificilmente na vizinhança dos "fortíssimos" impressionantes de Alexeyev, que ele jamais perde a chance de exibir; são um dom especial, honrando a tradição pianística russa. O difícil, então, é não fazer disso um efeito. Para nem falar de não fazer disso (e do pedal) uma forma de contornar ou compensar notas perdidas, que geralmente não têm maior importância, mas, nessa noite, nessa quantidade, infelizmente tinham.
Seja dito, em seu favor, que Alexeyev cria lindas texturas diferenciadas entre as mãos -cantando com a voz cheia da direita e acompanhando lá de longe com a esquerda. Mas nessa noite, também, nem todas as filigranas agudas de Schumann obedeciam ao espírito. Alguma coisa soava dura, ou travada, que só destravava depois, nos arrebatamentos do volume.
Na segunda parte, as coisas melhoraram. E a "Barcarolle" de Chopin (1810-49), uma das peças mais refinadas do mais refinado dos compositores do século 19, cresceu na seqüência do "Rondeau" op. 1, escrito pelo compositor adolescente. Mas aqui também não dá para não dizer que a renda de sonhos da música não sofreu um pouco com os contornos sempre expansivos, mas mais ou menos retos, da interpretação. Alexeyev faz a música soar grande. Nem sempre é tão bom para fazer soar pequena.
O que se ouviu depois foi um Rachmaninov (1873-1943) vibrante, para fora. Um compositor "russo" entre aspas. Mas, como russo ali era o pianista, o gosto torcido deve ser nosso. Os "Études", de qualquer modo, são irresistíveis, e Alexeyev tocou à vontade, de bem com a música.
Na volta: garoa e zero a zero. Valeu a idéia da música, erguendo suas dignidades contra o nada.


Dmitri Alexeyev
  
Quando: hoje e segunda, às 21h
Onde: Espaço Cultural BankBoston (av. Dr. Chucri Zaidan, 246, Itaim Bibi, SP, tel. 0/xx/11/3081-1911)
Quanto: de R$ 26 a R$ 40



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