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Artigo
Paulo Autran dominou os truques dos mestres
Ator falava como Laurence Olivier
e fisgava o público com seu olhar
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Chego do velório e percebo que Paulo Autran
morreu no Dia da
Criança. Não poderia ter escolhido dia melhor.
Talvez seja por isso que esse
"ator/símbolo de si mesmo" tenha escolhido um dia como esse e tenha deixado sua mulher,
Karin Rodrigues, com um sorriso lindo estampado na cara.
Num momento relaxado, indo buscar sua Karin na peça "O
Médico e o Monstro" (há mais
de dez anos), ele, Ney Latorraca
e eu só falávamos cretinices.
Sugeri que fôssemos visitar
Haroldo de Campos, que morava a três quarteirões do Tuca, e
Paulo brincou: "Mas eu tenho
que me vestir de "concreto"?
Símbolos?
Há um mês e meio, ele estava
sentado na minha platéia no
Sesc Anchieta, numa quarta-feira, justamente duas semanas
depois que ele mesmo havia sido "tombado" enquanto vivo, o
que é raríssimo.
Sim, o visionário Danilo Santos de Miranda resolveu transformar o teatro do Sesc Pinheiros em teatro Paulo Autran. E o
próprio Paulo pediu que fosse o
grandíssimo Marco Nanini
quem fizesse as cerimônias da
ocasião. Assim como no filme
"Quero Ser John Malkovich",
agora, finalmente, podia se "estar dentro" de Paulo Autran pagando ingresso. Ele riu disso
entre um trago e outro (maldito
cigarro!) enquanto discutíamos
algo sobre o Terceiro Reich.
"Estar dentro", dizia Paulo,
"tem muitas conotações". E
ríamos... O espetáculo que acabara de ver era o meu "Rainha
Mentira" e lidava com campos
de concentração, mas o sempre
bem-humorado intérprete (diferente de ator que representa)
estava se referindo a coisas
mais leves, obviamente.
Sempre estive ao lado desse
homem, e sempre "combinamos algo pra daqui a um ano"
mas nunca compartilhamos o
palco. Curioso. Fomos até chamados de "elitistas" pelo atual
ministro da Cultura.
O restaurante Piselli era o
nosso cruzamento acidental
mais freqüente em Sampa e lá
falávamos de tudo, assim como
fazíamos ao longo desses 23
anos, desde a casa de Tonia
Carrero, quando eu a dirigia
(junto com Sergio Britto, em
"Quartett", de Heiner Mueller),
em sua própria minimansão,
onde Paulo e Karin se hospedavam, no Rio.
Ator erudito
Ele era um ator e não um representador. Era um intérprete, alguém que vive em todas as
épocas, especialmente no futuro e vê tudo no passado. Paulo
é, ainda no presente, um educador, um erudito como poucos
nesta classe teatral. Ao contrário de tantos que andam por aí,
com ele as conversas podiam
perambular entre as razões da
Primeira e da Segunda Guerra
Mundial, os filósofos gregos, a
queda do Império Romano, a
divisão da China pós-Revolução Cultural de Mao...
E seu registro de voz era estranhíssimo. Fora da língua
portuguesa, digo, brasileira. Ele
falava exatamente no mesmo
registro ("pitch") que Laurence
Olivier. E, assim como uma
criança, tinha a curiosidade de
olhar para o céu e observar estrelas. Mas no teatro transformava as estrelas em refletores e
nos devolvia a luz de uma lâmpada que batia em sua pupila e
nos fisgava, não importa em
que ponto ou fundura do palco
ele se encontrava. Truques de
grandes mestres, já que carisma não se explica.
Ele olhava a imensidão do
universo com a mesma intensidade que o urdimento do teatro. Essa vivência é muito difícil
de explicar. Mas Paulo será
muito difícil de explicar porque, mesmo enfermo, ele não
parava de ir ao teatro, de querer
enxergar novos talentos, de
querer estar no palco por eles,
ou melhor, através deles.
O ator morre todos os dias,
no momento em que se veste de
personagem. Morre de novo
quando o personagem morre
ou quando a cortina fecha ou
quando o público o aplaude ou
na solidão do seu camarim.
Quem morreu na última sexta
foi uma grandiosa criança chamada Paulo Autran, cujo legado não nos deixará nunca.
Quem sabe ele está estudando um novo método qualquer
pra poder nos surpreender novamente. Vai com Deus, meu
querido. Fique em paz!
GERALD THOMAS é autor e diretor de teatro
Felipe Hirsch, que dirigiu Autran em
"O Avarento", comenta a importância
do ator www.folha.com.br/072861
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