São Paulo, segunda-feira, 15 de outubro de 2007

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NELSON ASCHER

O novo contrato sócio-natural


O princípio do contrato atual é o de que um homem vale tanto quanto outro

DUZENTOS anos atrás, em 25 de março de 1807, aconteceu algo de novo no mundo: um parlamentar inglês, William Wilberfoce (1759-1833), convenceu o Parlamento do país a aprovar uma lei ("Slave Trade Act") que proibia o tráfico de escravos no império britânico. Tratava-se do primeiro sucesso do abolicionismo, movimento que, conduzido por minorias religiosas, lutava há décadas contra a escravidão.
Agora que, no Ocidente, a escravidão não passa de memória remota, parece óbvio vê-la como exceção, um capítulo aberrante da história. Ela, porém, durante os cerca de 10 mil anos que antecederam o século 19, havia sido a regra, uma regra tão difundida e enraizada que a maioria a considerava uma constante permitida por Deus ou pela natureza humana.
Pior do que tal miopia histórica, no entanto, é o ponto de vista que minimiza quanto de revolucionário houve na abolição. Sucede que, desde o aquecimento global, que sem reclamações de Al Gore acabou 10/ 12 mil anos atrás com a última glaciação e permitiu à humanidade deixar de viver em pequenos grupos de caçadores nômades para criar civilizações cada vez mais complexas, prevalecia uma espécie de pacto sócio-natural que, traçando a linha divisória no meio de nossa espécie, separava os autênticos seres humanos (que eram livres e podiam ser proprietários tanto dos reinos mineral, vegetal e animal quanto de outros homens) daqueles que eram ou podiam, como bichos, ser propriedade, e de cuja vida os primeiros podiam dispor.
Convém não desdenhar a distinção acima, pois sua conseqüência é a de que a desigualdade essencial era a norma e não havia, portanto, uma humanidade. Para todos os efeitos e com alterações maiores ou menores de época em época, de civilização em civilização, os homens que pertenciam a outros não eram humanos, mas somente, como os protagonistas da fábulas de Esopo (ele mesmo um escravo), animais falantes.
O que talvez tenha permitido começar a se pensar na erradicação do escravismo foi, é claro, a Revolução Industrial. Antes dela, a principal força motriz da civilização eram os músculos dos animais mudos ou falantes, e quem não saiba de quanto esses são capazes, que suba as alturas de Machu Pichu, visite Angkor Vat, contemple o Coliseu ou as pirâmides egípcias. A criatividade ocidental permitiu que tal energia fosse substituída com vantagem por aquela extraída de combustíveis fósseis. E, coincidência ou não, a mesma era acenou com um contrato sócio-natural diferente no qual seres humanos podiam possuir tudo no mundo natural exceto outros seres humanos, enquanto nenhum desses podia ser propriedade alheia.
Essa, e não a de renda ou resultados, é que é a igualdade central. É a partir dela que se estabelecem as demais, a saber, a igualdade entre os sexos, etnias, membros de religiões diferentes etc. Na sua ausência, o próprio conceito de direitos humanos se torna difícil de imaginar. Desde que ela começou a ser instaurada, por outro lado, cada vez mais gente se sente cada vez menos à vontade para dispor da vida ou liberdade alheias e é dela, assim, que a repulsa à pena capital e até ao encarceramento de criminosos se origina.
O princípio básico do contrato atual é o de que um homem vale tanto quanto outro (e, aliás, caso seja assalariado, ganha não de acordo com o que vale intrinsecamente, mas segundo o preço no mercado de seu trabalho). As diversas revoltas contra tal igualitarismo é que têm sido o genuíno reacionarismo dos dois últimos séculos. Há, por exemplo, culturas nas quais as mulheres valem menos ou nas quais membros de etnias ou religiões distintas das dominantes têm menos direitos, e assim por diante.
Para concluir, convém lembrar que os dois maiores gêmeos homicidas do século 20, o comunismo e o nazismo, foram, antes de mais nada e cada qual a seu modo, tentativas supremas de restabelecer a escravidão. Os nazistas viam seus compatriotas como uma raça de proprietários cujo destino era viver do trabalho escravo de povos "inferiores". E, malgrado seu fraseado libertário, onde quer que tenha chegado ao poder, o comunismo transformou a população como um todo (e não apenas os condenados aos campos de trabalhos forçados) em propriedade do Estado ou, mais precisamente, em propriedade dos donos do Estado. Não é à toa que até hoje norte-coreanos ou cubanos não contam sequer com a liberdade básica de abandonar os latifúndios e os senhores feudais aos quais pertencem.


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