São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 2002

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Caixa de 28 CDs devassa a criação de Gilberto Gil no intervalo 1975-2002, com dezenas de faixas inéditas

Das tripas coração

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
O cantor e compositor baiano Gilberto Gil, que é tema da recém-lançada caixa "Palco" no ano em que completa 60 anos


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

É mais que uma (caríssima) caixa de 28 CDs recuperando toda a discografia individual de Gilberto Gil, 60, entre 1975 e 2002. "Palco" vai às entranhas do artista baiano, somando ao material oficial 60 faixas-bônus, um disco que ficara inédito no Brasil (a trilha do filme "Quilombo", de 84), outro totalmente inédito (a trilha do balé "Z", de 95) e dois volumes de sobras de estúdio dos anos 80 e 90.
E não é só isso. Pela primeira vez se relançam, num CD à parte, oito raríssimas gravações feitas pelo jovem Gilberto Gil entre 1961 e 1963, em Salvador, por um selo independente. A Warner promete que todo esse material de elite será também editado em CDs individuais, mas só no próximo ano.
O que se constata do farto material inédito reunido pelo pesquisador Marcelo Fróes é que é majoritariamente composto de precárias versões demo. São, além disso, canções que foram rejeitadas por Gil na composição de LPs comerciais como "Luar" (81), "Um Banda Um" (82) e "Extra" (83).
Gil afirma não se preocupar com o fato de a revelação das faixas demo devassar seu processo de criação. "O fato de colocar sobras de discos é uma bandeira incrível, porque é aquilo que rejeitei quando fiz, o que não estava no padrão, em princípio. Acho bom. Não me importa essa exposição de ir para dentro dos intestinos, ver a feiúra que há por trás."
O artista responde se tais faixas foram abandonadas porque eram ruins: "Sinceramente não lembro quais eram os critérios de rejeição, mas quase certamente eram problemas de arte-final, de insatisfação com resultados. Nada mais que isso".
Do bailado dos baús de músicas, em que artistas vão apanhando para cada novo disco canções que haviam sobrado de trabalhos anteriores, Gil diz que sai da caixa "Palco" com o reservatório quase vazio. Mas nem nisso demonstra preocupação: "Agora é produzir, fazer outras coisas".
Um novo projeto, aliás, já está em curso: o reencontro com a colega de geração Rita Lee, com quem já havia feito a turnê/disco ao vivo "Refestança" (77). "É ela que quer, já está fazendo letras, excitadíssima. É um projeto de sair por aí cantando, provavelmente deve virar disco. Rita quer muito, se ela quer, eu quero."
Ponto bem explorado nos textos que acompanham a caixa é o de uma crise criativa que acometeu Gil entre "Luar" e "Um Banda Um" e que o fez rejeitar consecutivamente dois álbuns inteiros -o autor e Fróes não acharam esse material para acrescentá-lo à caixa-preta agora aberta.
"É a única crise da qual tenho lembrança em minha carreira. Cada novo disco era estimulado pela inércia, era basicamente uma coisa automática. Vi que não estava como eu queria, parei de fazer, fui montar uma nova banda. Aí consegui certa satisfação", conta.
Hoje, ele tenta reavaliar a crise. "Você está jovem, fogoso, querendo ocupar seu espaço, garantir seu pódio olímpico. Chega uma hora em que isso leva à crise. Você não se importa com a velocidade. Quanto mais veloz, melhor. Ou seja, pior. Mas assim é a vida."
Isso teria por acaso transformado nos menos interessantes de sua história os discos a partir de "Realce" (79) até o mergulho na nascente cultura pop-rock dos 80? "Pode ser que sim, mas acho que talvez desinteressante fosse tudo aquilo, o período todo, o tipo de música que se fazia. Mas acho que ainda vamos gostar muito dessas coisas, quando envelhecerem."
Seja como for, o período desembocou em outro também descrito na caixa, de quando o artista quis virar político, tornando-se, em Salvador, a partir de 88, secretário de Cultura, postulante (vetado pelo PMDB) a prefeito e vereador.
Gil fala sobre aquela fase e responde se ela prejudicou sua carreira musical: "O desmonte da União Soviética por Gorbatchov me excitou muito. Foi suficiente para me dar vontade de atuar na política. Tive que ficar mais preso a Salvador, tirei pelo menos 50% do meu tempo de dedicação artística para dar à política. Sem dúvida nenhuma prejudicou, sim".
O homem que se entusiasmou com o desmonte do socialismo soviético se converteu agora em entusiasta de primeira hora da quarta candidatura Lula, embora afirme que não aceitaria um aceno (que, diz, não houve até agora) para ser ministro, como aconteceu antes por parte de FHC.
"Digo que não, por uma razão muito clara. Lula precisa, no seu primeiro ministério, de pessoas que saibam dizer não com firmeza. Eu não tenho esse perfil."
Comenta sua própria viagem, de Gorbatchov a Lula: "Da mesma forma que Gorbatchov excitava pelo desmonte de uma coisa desgastada e já não promissora, o Lula, ao contrário, entusiasma pela montagem de algo novo e promissor, com um novo risco que o país resolveu correr".
Diz não temer um retrocesso a valores pré-Gorbatchov: "Esse medo nunca existiu. O fato de o povo ter votado no Lula significa claramente uma desvinculação desse medo. Ficou claro para todo mundo que Lula vinha com uma proposta de um PT diferente, mais ao centro, mas ainda com a visão socialista do compromisso com os desassistidos. De esquerda hoje é aquele que defende os interesses dos não-satisfeitos".
Gil, pró-Lula, virou então um não-satisfeito? "Não, sou eu defendendo os interesses dos não-satisfeitos. Eu sou um satisfeitíssimo (ri), imagina só."


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