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São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

Obra do suíço Jean Ziegler relaciona as ações das máfias do Leste Europeu com as instituições sociais

Imediatismo desatualiza "Os Senhores do Crime"

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jean Ziegler é um agitador político que tem trazido para o debate público temas sobre os quais costuma pesar profundo véu de desconhecimento. Ele foi um dos primeiros a denunciar o caráter predatório da suposta neutralidade da Suíça durante a Segunda Guerra Mundial e das leis de sigilo bancário naquele mesmo país, do qual é cidadão.
Depois, em "Os Senhores do Crime", que acaba de sair no Brasil pela editora Record, Ziegler tratou das graves implicações para as instituições sociais de quase todo o mundo geradas pela ação das máfias criminosas nos países da antiga União Soviética.
Apesar da relevância dos temas que discute em "Os Senhores do Crime" e do interesse de algumas informações que coletou em entrevistas com promotores públicos e investigadores policiais europeus, o conteúdo do livro perde muito de sua credibilidade pelo tom panfletário que o permeia.
Ziegler, que foi da bancada que representa a Suíça no parlamento europeu e atualmente é relator especial do programa da Organização das Nações Unidas sobre direito à alimentação, continua, aos 68 anos, a cumprir a missão que Ernesto "Che" Guevara lhe aconselhou, em 1964, a realizar.
Naquele ano, "Che" foi a Genebra como líder da delegação cubana a uma conferência sobre açúcar. O jovem Ziegler, já fascinado pelo marxismo, foi seu motorista por duas semanas. Ele conta com frequência que no último dia de trabalho com Guevara, pediu ao comandante para seguir junto para Cuba e que "Che" respondeu: "Você nasceu no cérebro do monstro; é aqui que você tem de trabalhar e combater".
Um dos problemas com essa edição de "Os Senhores do Crime" nada tem a ver com o autor: é o fato de ela estar muito defasada no tempo. Publicado originalmente em 1998 e com uma abordagem muito imediatista dos problemas econômicos e políticos, o livro ficou desatualizado. Por exemplo, grande parte da análise inicial do trabalho é constituída de críticas à artificialidade dos altos valores de empresas da chamada "nova economia", que se desvaneceram com o estouro da "bolha virtual" ocorrido em 2000.
O mais grave, no entanto, é a superficialidade dos ataques do autor à globalização da economia, ao capitalismo monopolista e às assimetrias de comércio mundial. Ele está provavelmente certo em boa parte dos reparos que faz. Mas, por não fundamentar nem com dados nem com boa teoria seus argumentos, cai na vala comum dos slogans de passeata.
Toda a primeira parte de "Os Senhores do Crime", que trata das relações entre a globalização dos mercados e o declínio do Estado nacional, um tema interessantíssimo e muito bem tratado por diversos autores (entre eles, por exemplo, o brasileiro Gilberto Dupas), é desperdiçado em um tiroteio infindável que mistura lugares-comuns genéricos, insinuações não documentadas e referências a casos conhecidos baseadas em noticiário de jornal.
Os capítulos que tratam do caso mais específico das máfias criminosas na antiga União Soviética são mais consistentes e trazem alguma novidade com relação à maneira como elas operam e a possibilidade de combatê-las com êxito. Mas permanece uma tendência irrefreável a misturar essa informação com jargões doutrinários, assim como o aspecto mosaicado da mistura de fatos que deixam de ser conectados por um fio condutor coerente.
É uma pena, porque a atualidade do assunto é claríssima, como mostra a crise política e econômica na Rússia provocada pela prisão de Mikhail Khodorkovsky (um dos expoentes da associação entre crime organizado e atividades de conglomerados da iniciativa privada que se criaram no turbilhão posterior à queda do Muro de Berlim), e a falta de conhecimento do público a seu respeito é evidente. Apesar do entusiasmo juvenil e da admirável coragem, Ziegler não ajuda a iluminar suficientemente esse tópico.


Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"


Os Senhores do Crime
 
Autor: Jean Ziegler Tradução: Clóvis Marques Editora: Record Quanto: R$ 40 (332 págs.)



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