São Paulo, quinta-feira, 15 de novembro de 2007

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Crítica/"A Festa de Abigaiu"

Peça se perde na multiplicidade do texto

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Mais conhecido no Brasil pelo filme "Segredos e Mentiras", Mike Leigh tem um universo próprio e marcante, não só em relação a seus temas -em geral, comédias de situação a partir da vida medíocre da classe média ou operária inglesa- mas também a seus procedimentos.
Em peças e filmes, ele costuma partir de longos improvisos com os atores. Ficou famosa a cena de "Segredos e Mentiras" em que a mãe encontra a filha dada à adoção: filmada sem cortes, numa cena na qual personagens e atrizes se encontravam pela primeira vez, por oito minutos acompanhamos a surpresa real que o diretor reservara a suas "cobaias": a mãe era branca, e a filha, negra.
Esse limite entre o sitcom e a performance é particularmente eficaz quando se tem grandes atores, em cumplicidade criativa com o autor-diretor -e Leigh pôde contar ao longo de sua carreira com estreantes do peso de Tim Roth e Gary Oldman.

Sátira escrachada
"A Festa de Abigaiu", de 1977, pertence à primeira fase do autor, quando a sátira era mais escachada que cruel, e relata em tempo real um encontro social entre vizinhos -uma espécie de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf" sem veleidades intelectuais. Em tempo real estrito, como num reality show, espiamos a classe média tentar manter a pose, até que tudo se desfaz em histeria e bebedeira.
Esta primeira montagem brasileira, apontada como melhor peça do 11º Festival da Cultura Inglesa, reestréia no teatro Augusta com prestígio, apesar de ser a primeira direção do cineasta Mauro Baptista Védia e de contar com artistas tarimbados, mas pouco conhecidos.
Assim, a protagonista e tradutora Ester Laccava, que faz Beverly, a anfitriã vulgar que humilha o marido, exerce bem um personagem que ao mesmo tempo irrita e enternece o público. Marcos Cesana faz Tony, um operário que sobe na vida e é objeto de desejo de Beverly e de desprezo do marido Lawrence (Eduardo Estrela). Cesana parece se divertir, o que é sempre contagioso, mas lhe falta concentração para não rir de si mesmo. Estrela mantém mais naturalidade, mas não ultrapassa o convencionalismo que limita o personagem.
Ângela, mulher de Tony, é uma enfermeira deslumbrada com a ascensão social, e Ana Andreatta opta pela caricatura aberta, o que é eficiente, mas se desgasta logo. Melhor estratégia é a de Fernanda Couto,que faz Susan, a vizinha que já foi casada com um arquiteto, mas que perdeu o controle de sua própria casa: é a mãe da adolescente Abigaiu, que dá a festa na casa ao lado. Expulsa de sua casa e da antiga sofisticação intelectual, engole sapos e amendoins até o vômito catártico -Couto é engraçada (e trágica) sem perder a delicadeza.
A multiplicidade de estilos é opção do diretor Védia, o que é coerente com a autonomia de criação dos atores proposta por Leigh. Mas sua inexperiência no palco se torna clara com a inabilidade em administrar ritmos difíceis do texto, fazendo com que a peça se dilate e perca o impulso para a explosão final, que soa quase arbitrária.
A informalidade da proposta permite esse tom quase amador, o que parece não incomodar a platéia. Mas uma direção de ator que exigisse uma partitura mais apurada tornaria o espetáculo mais inquietante e menos digestivo. Suavizada pelo deboche, engolida pelo sitcom que quer devorar, "A Festa de Abigaiu" funciona, mas acaba marcando pouco.


A FESTA DE ABIGAIU
Quando:
hoje, às 21h. Até 20/12
Onde: teatro Augusta (r. Augusta, 943, tel. 0/xx/11/3151-4141)
Quanto: R$ 40
Avaliação: regular


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