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CONTARDO CALLIGARIS
Yoko Ono
Ela defende a pequena liberdade íntima e concreta do fazer -a mais difícil e preciosa
NO SÁBADO passado, no Centro
Cultural Banco do Brasil de
São Paulo, foi aberta a exposição retrospectiva de Yoko Ono.
Não deixe de visitá-la (até 3 de fevereiro de 2008), mas escolha bem o
momento: a abertura foi um desastre. Para ver uma obra que fala de liberdade, houve filas, barreiras e distribuição de fichas.
Na quinta-feira anterior, no Teatro Municipal, Yoko Ono fez uma
performance que foi constrangedora. Como foi a única, sorte de quem
não esteve lá.
Yoko Ono já era uma artista relevante quando ela encontrou John
Lennon. A lenda conta que Lennon
se apaixonou por ela por causa de
uma obra, "Ceiling Painting" (pintura no teto), de 1966. Trata-se de uma
escada branca no topo da qual você
encontra uma lupa, com que é possível ler uma inscrição: "Yes". É um
apelo bonito à nossa capacidade de
viver e de mudar o mundo: "sim", é
permitido desejar, basta se dar a pena de subir a escada.
O espírito da contracultura americana poderia ser resumido pelo
"Yes" de Yoko Ono ou pelo "Do It"
(faça-o) de Jerry Rubin. Não é só um
enfrentamento com a autoridade; é
a luta contra as resistências internas
que nos impedem de agir (e desobedecer, se for preciso).
No CCBB, é proibido tocar na escada de "Ceiling Painting". O que fazer? No espírito da exposição, subir
a escada encarando os seguranças?
Ou negar o sentido da exposição e
acatar a proibição?
Nos anos 60, eu teria subido e armado um barraco, mas os tempos
mudaram. Na época, se comprasse
uma briga, a metade dos visitantes
me apoiaria, e talvez a coisa terminasse na demolição do CCBB por
uma turma de revoltados, até a chegada da polícia. Hoje, eu seria um
vândalo isolado.
Por causa dessa mudança dos
tempos, na exposição, as peças interativas (quadros para pintar ou para
encher de pregos, cacos que podemos rejuntar com cola etc.) são tristes pela modéstia bem comportada
de quem aceita o convite a se expressar. Por exemplo, somos convidados
a escrever um desejo num papel que
penduraremos na "Árvore do Desejo", a qual, no fim da exposição, ficará carregada de sonhos e aspirações.
Escutei duas mulheres comentando que seria legal montar uma árvore dessas para o Natal. Pendurar desejos é mais divertido do que pendurar anjinhos e bolinhas, mas que desejos serão confessados no espaço
familiar e meloso da festa natalina?
Enfim, o conjunto da obra de Yoko Ono é forte e corajoso; é difícil
não ser tocado por trabalhos como
"Espécies em Extinção" ou "Objetos
de Sangue". Mas tenho um carinho
especial pelas "Instruções". São "receitas" para criar uma "obra de arte", que pode ser um objeto ou um
comportamento.
Desde os anos 60, as "instruções"
são a marca registrada da arte conceitual, pela qual a obra pode ser reduzida ao seu "conceito", ou seja, às
instruções necessárias para que cada um possa criá-la. As instruções de
Yoko Ono, escritas em japonês ou,
quando são em inglês, numa caligrafia cuneiforme lindíssima, são breves poemas para um domingo de
manhã em que você está sozinho,
em paz e com vontade de tentar algo
que você nunca fez: pintar uma
aquarela, seguir um desconhecido
na rua, olhar para o céu pelo buraco
que você se permitiu fazer na cortina da sala. Yoko Ono defende a pequena liberdade íntima e concreta
do fazer. É a liberdade mais difícil,
mais verdadeira e mais preciosa.
Com o tempo, vários artistas conceituais, em vez de praticar a redução da obra às instruções para produzi-la, entenderam que, por eles
serem "conceituais", deviam roubar
a cena aos filósofos e pensar nas
"grandes questões" do mundo. De
repente, muitas obras conceituais se
transformaram em lugares comuns
primários.
É o que aconteceu na performance de quinta-feira. Aprendemos, por
exemplo, que é ruim bombardear cidades, que as guerras matam pessoas e não é legal jogar vitríolo na cara das mulheres, as quais se libertam
parando de usar sutiã. São coisas
que eu já suspeitava -eu e todas as
torcidas do país. Revisar esses "pensamentos" graças a imagens-clichês
num telão e músicas cantadas num
clima de show pop, com lançamento
de beijinhos e lembrançinhas para o
público... haja paciência.
Para esquecer esse mau momento, basta visitar a exposição do
CCBB e seguir uma instrução qualquer da própria Yoko Ono. Por
exemplo (estou escrevendo no domingo): "Disponha seu quarto do
jeito que você deseja que esteja sua
mente".
ccalligari@uol.com.br
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