São Paulo, quinta-feira, 15 de novembro de 2007

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Comida

NINA HORTA

Cachorrão de estimação

Geralmente resisto a tudo em matéria de consumo; menos à Amazon, bolsas e e-mails delicados

ESTA É uma história nova em folha. Nunca tive um bom fogão. A não ser o de Paraty, já com uns 30 anos de idade, profissional, de ferro, com grelha, banho-maria e o diabo a quatro. A firma fechou e agora está difícil achar peças para ele. Chamo de bom fogão aquela coisa sem frescura, sem muita necessidade de manual, com a qual se pode perder a paciência e fechar o forno com o pé por estar com o frango assado nas mãos. Aquele cujas medidas do forno permitem que as Sylvias Plaths em potencial se suicidem com toda a comodidade, sem que tudo se trave para não escapar gás. Que não precise apitar para nada e que os botões não saiam nas suas mãos a toda hora. Um fogão macho.
Existem muitos fogões profissionais e bons, bem baratos, mas observo que são grandes demais ou sem forno, ou o forno simplesmente colocado na parte de baixo do fogão sem fazer parte dele, de verdade. Mais ou menos o que eu queria, mas feios para danar. Há os grandes, profissionais e bonitos, mas só para restaurante, mesmo, por causa do tamanho. Passeando pela Gabriel Monteiro da Silva, vi na vitrine um fogãozinho de ferro, bravo, quatro bocas, bocões, aliás, entrei, perguntei o preço. Era daqueles que você imagina que a vendedora enlouqueceu. Não quero um míssil, quero um fogão. Ou faz cara de paisagem, ou diz que está só passando e que volta outra vez. Escolhi a segunda opção, rosto onde nada se lia, e saí com todos os fantasmas do desejo nas minhas canelas.
No dia seguinte, fui convidada para um almoço e, como sou muito desorientada, só quando estava ombreando com o bendito fogão é que vi que havia sido depositada na mesma loja, onde seria o almoço. Demos risada, a vendedora e eu. Contei ao dono minha frustração e fuga, batemos um papinho, confessei que não tinha dinheiro para um fogão daquela estirpe dos vikings, almocei bem e voltei para casa.
Semanas depois, a vendedora me passa um e-mail, com uma oferta tentadora. Aquele fogão da vitrine iria para um evento culinário, o que faria dele, imediatamente, um fogão de segunda mão. Serviria aos chefs por um dia ou dois e com isto seria vendido pela metade do preço. E em muitas prestações. Huuuum...
Eu estava numa gastação de dinheiro sem fim, raspando, pintando, com uma mão-de-obra triste de ruim que trabalhava tudo em dobro. Pinta, raspa, pinta de novo, essas coisas. Tudo piorando em vez de melhorar. Bem, neste ínterim, a vendedora, Andréa, doce loira, me tentava. Geralmente resisto a tudo em matéria de consumo, tudo, menos à Amazon, algumas bolsas e e-mails delicados e bem escritos. Aí, confesso, fico fraca.
Acreditem, ela me vendeu um fogão viking de 1 tonelada, quase de segunda mão, o que não o diminui nada em matéria de tonelada. Tenho que confessar que passei vergonha, porque as portas da cozinha são estreitas, e não havia jeito do nobre viking adentrar sua nova moradia. Talvez demolir a casa, pensei, já presa irremediável do objeto de desejo. Resolveram de outro jeito. Demoliram o fogão e montaram de novo lá dentro. Fingi que não era comigo, me escondi no quarto, e minha filha tomou as providências.
Bom, estão avisados. Sou a feliz possuidora de um fogão que deixa todos os outros no chinelo, solta fogo pela ventas, como o lobo dos três porquinhos, ferve a água num minuto, tem forno de convecção, grill e o diabo a quatro. Para testá-lo, pus numa vasilha rasa seis pêssegos maduros, com um dedo de creme de leite. Em dez minutos, estavam macios, queimadinhos por cima, o creme quase desaparecera, dando lugar a um caldo leve e cheiroso.
Se o viking tivesse rodas e passasse pela porta, eu andaria com ele aos sábados, pelo bairro, puxando pela coleira. Um bom fogão pode ser o melhor amigo do homem.


ninahorta@uol.com.br

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