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Comida
NINA HORTA
Cachorrão de estimação
Geralmente resisto a tudo em matéria de consumo; menos à Amazon, bolsas
e e-mails delicados
ESTA É uma história nova em
folha. Nunca tive um bom fogão. A não ser o de Paraty, já
com uns 30 anos de idade, profissional, de ferro, com grelha, banho-maria e o diabo a quatro. A firma fechou
e agora está difícil achar peças para
ele. Chamo de bom fogão aquela coisa sem frescura, sem muita necessidade de manual, com a qual se pode
perder a paciência e fechar o forno
com o pé por estar com o frango assado nas mãos. Aquele cujas medidas do forno permitem que as
Sylvias Plaths em potencial se
suicidem com toda a comodidade,
sem que tudo se trave para não
escapar gás. Que não precise apitar
para nada e que os botões não
saiam nas suas mãos a toda hora.
Um fogão macho.
Existem muitos fogões profissionais e bons, bem baratos, mas observo que são grandes demais ou sem
forno, ou o forno simplesmente colocado na parte de baixo do fogão
sem fazer parte dele, de verdade.
Mais ou menos o que eu queria, mas
feios para danar. Há os grandes, profissionais e bonitos, mas só para restaurante, mesmo, por causa do tamanho. Passeando pela Gabriel
Monteiro da Silva, vi na vitrine um
fogãozinho de ferro, bravo, quatro
bocas, bocões, aliás, entrei, perguntei o preço. Era daqueles que você
imagina que a vendedora enlouqueceu. Não quero um míssil, quero um
fogão. Ou faz cara de paisagem, ou
diz que está só passando e que volta
outra vez. Escolhi a segunda opção,
rosto onde nada se lia, e saí com todos os fantasmas do desejo nas minhas canelas.
No dia seguinte, fui convidada para um almoço e, como sou muito desorientada, só quando estava ombreando com o bendito fogão é que
vi que havia sido depositada na mesma loja, onde seria o almoço. Demos
risada, a vendedora e eu. Contei ao
dono minha frustração e fuga, batemos um papinho, confessei que não
tinha dinheiro para um fogão daquela estirpe dos vikings, almocei
bem e voltei para casa.
Semanas depois, a vendedora me
passa um e-mail, com uma oferta
tentadora. Aquele fogão da vitrine
iria para um evento culinário, o que
faria dele, imediatamente, um fogão
de segunda mão. Serviria aos chefs
por um dia ou dois e com isto seria
vendido pela metade do preço. E em
muitas prestações. Huuuum...
Eu estava numa gastação de dinheiro sem fim, raspando, pintando,
com uma mão-de-obra triste de
ruim que trabalhava tudo em dobro.
Pinta, raspa, pinta de novo, essas
coisas. Tudo piorando em vez de
melhorar. Bem, neste ínterim, a
vendedora, Andréa, doce loira, me
tentava. Geralmente resisto a tudo
em matéria de consumo, tudo, menos à Amazon, algumas bolsas e e-mails delicados e bem escritos. Aí,
confesso, fico fraca.
Acreditem, ela me vendeu um fogão viking de 1 tonelada, quase de segunda mão, o que não o diminui nada em matéria de tonelada. Tenho
que confessar que passei vergonha,
porque as portas da cozinha são estreitas, e não havia jeito do nobre viking adentrar sua nova moradia.
Talvez demolir a casa, pensei, já presa irremediável do objeto de desejo.
Resolveram de outro jeito. Demoliram o fogão e montaram de novo lá
dentro. Fingi que não era comigo,
me escondi no quarto, e minha filha
tomou as providências.
Bom, estão avisados. Sou a feliz
possuidora de um fogão que deixa
todos os outros no chinelo, solta fogo pela ventas, como o lobo dos três
porquinhos, ferve a água num minuto, tem forno de convecção, grill e o
diabo a quatro. Para testá-lo, pus numa vasilha rasa seis pêssegos maduros, com um dedo de creme de leite.
Em dez minutos, estavam macios,
queimadinhos por cima, o creme
quase desaparecera, dando lugar a
um caldo leve e cheiroso.
Se o viking tivesse rodas e passasse pela porta, eu andaria com ele aos
sábados, pelo bairro, puxando pela
coleira. Um bom fogão pode ser o
melhor amigo do homem.
ninahorta@uol.com.br
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