São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2008

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O armazém de José Paulo

Lançamento da "Poesia Completa' e de uma antologia de ensaios do poeta e tradutor paulista José Paulo Paes, que morreu há dez anos, ilumina as faces lírica e teórica de sua obra

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Passados dez anos da morte de José Paulo Paes -cuja "Poesia Completa" acaba de ser lançada, junto à antologia de ensaios "Armazém Literário"-, críticos e leitores ainda não conseguem dissociar sua obra do perfil biográfico.
Ou, melhor dizendo, essa poética irônica, desinflada, herdeira a um só tempo do modernismo e do concretismo, vem sempre interpretada à luz do retrato cativante do tradutor e ensaísta autodidata. Ele viveu à margem de movimentos estéticos e instituições acadêmicas, generosamente recebendo jovens na casa do bairro paulistano de Santo Amaro, sempre ao lado da mulher, Dora, musa de seus versos e dedicatórias.
Resenhas e apresentações insistem -a exemplo do prefácio de Rodrigo Naves para "Poesia Completa"- nas analogias entre as qualidades do homem (modéstia, humor, aversão à pompa) e a feição de uma obra que escolheu o molde despretensioso do epigrama, do chiste, do poema-piada. Mesmo quem não conheceu José Paulo Paes pessoalmente, porém, consegue deduzir da obra os traços que lhe são atribuídos por amigos e admiradores.
Para compreender poemas como "À Minha Perna Esquerda" ("Pernas/ para que vos quero?/ Se já não tenho por que dançar./ Se já não pretendo/ ir a parte alguma./ Pernas?/ Basta uma") e "À Bengala" ("Contigo me faço/ pastor do rebanho/ de meus próprios passos"), certamente é bom conhecer as vicissitudes desse autor que sofreu uma amputação devido a problemas circulatórios.
Mas o tom galhofeiro, que põe entre parênteses qualquer ilusão de purgar a dor pela arte, logo se conecta a um conjunto de poemas nos quais se percebem o leitor atento da lírica latina e as afinidades com a geração marginal dos anos 70.

Concreto com humor
Nesse arco de referências, a poesia concreta tem papel decisivo. Paes injetou doses maciças de humor no jogo de permutações sígnicas de Décio Pignatari e dos irmãos Campos.
E chegou a experimentar o "ready made" -como no poema visual "Sick Transit", que reproduz uma placa de trânsito na qual se lê "Liberdade Interditada", tendo abaixo uma flecha que indica "Paraíso".
Verdadeiro achado, em que os nomes de dois bairros de São Paulo veiculam ironias em relação ao clima asfixiante da ditadura militar, o teor crítico desse poema visual é reforçado pelo título, que brinca com o provérbio latino "Sic transit gloria mundi" (Assim passa a glória do mundo) e com a palavra "sick" (do inglês, "doente").
O trânsito de Paes por esse mundo enfermiço, todavia, vai além do registro humilde do poeta que se recolhe na contemplação lúdica. Sua "Poesia Completa" traz momentos de lirismo intenso -sobretudo nos livros iniciais ("O Aluno", "Epigramas") e na maturidade de "Prosas Seguidas de Odes Mínimas" e "A Meu Esmo".
Paes extraiu de Bandeira e Drummond uma poesia em tom menor e uma atenção às miudezas que instala inquietação e pasmo no banal.
Do apito do trem que perfura a noite, tornando vasta a vida provinciana ("Noturno"), ao "gosto inato da dissolução", individuado no "automóvel imóvel" que abole a idéia de movimento ("Momento"), desenham-se um sentimento do mundo e uma lição de coisas temperados por epigramas que satirizam o declínio da experiência moderna: "o mundo foi feito/ para culminar/ num cartão-postal", escreve Paes, em paródia aos versos em que Mallarmé dizia que tudo era feito para acabar em livro. "Uma palavra esquecida/ à beira do precipício [...]/ Uma palavra tranqüila/ em meio ao pânico". As passagens de "Ode" (do livro "Epigramas") talvez sirvam de resumo de uma obra em que a mirada aparentemente pacata das coisas esconde complexidades irredutíveis ao temperamento do poeta.

POESIA COMPLETA
Autor: José Paulo Paes
Editora: Cia. das Letras
Quanto: R$ 47 (512 págs.)

RAIO-X
Nome: José Paulo Paes
Nascimento: 22/7/1926, em Taquaritinga (SP)
Morte: 9/10/1998, em São Paulo
Formação: química industrial, em Curitiba
Início da atividade literária: revista "Joaquim", dirigida por Dalton Trevisan
Tradução: traduziu volumes do inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, latim, dinamarquês, grego moderno e grego antigo
Obra publicada: 16 livros de poemas (sete infanto-juvenis) e dez de ensaios literários
Algumas obras: "O Aluno" (1947), "Cúmplices" (1951), "Anatomias" (1967), "Meia Palavra" (1973), "Resíduos" (1980), "Um por Todos" (poesia reunida, 1986), "A Poesia Está Morta Mas Eu Juro que Não Fui Eu" (1988), "Prosas Seguidas de Odes Mínimas" (1992), "A Meu Esmo" (1995), "Socráticas" (póstumo, 2001), "Vejam Como Eu Escrevo Bem" (póstumo, 2001)


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