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Em ensaios, Paes pratica arte da conversação
Antologia de textos mostra equilíbrio
entre o rigor analítico e a informalidade
"Armazém Literário" traz
notas sobre "Frankenstein" e
linhagem de anti-heróis na
literatura brasileira, de
"O Coruja" a "Angústia"
COLUNISTA DA FOLHA
Textos de crítica literária escritos com alma de ensaísta.
Essa é uma definição possível
para a antologia "Armazém Literário", de José Paulo Paes,
lançada com o volume de sua
"Poesia Completa".
A definição exige um breve
comentário. O termo "ensaio"
designa um gênero específico,
que surgiu no século 16 com
Montaigne e se aplica a textos
de caráter digressivo, meditações nas quais importa menos o
tema abordado do que o movimento da escrita, o fluxo errante do pensamento.
Com a especialização universitária, a palavra passou a designar qualquer artigo curto,
sem pretensão científica, mas
com objeto definido e rigor
analítico herdados das práticas
acadêmicas. Com isso, perdeu-se aquilo que fez do ensaio uma
das mais ricas tradições da literatura: o espírito informal, o
sentido de anotação, um subjetivismo cético em relação a juízos categóricos, as hesitações e
os impasses explicitados na página impressa.
Os textos de "Armazém Literário" expressam bem essas
duas acepções. Contemporâneo das grandes correntes da
teoria literária (formalismo, estruturalismo e outros "ismos"),
José Paulo Paes escreveu análises de autores como Machado
de Assis, Murilo Mendes e Jorge de Lima, ou sobre temas como o surrealismo no Brasil, que
utilizam todo o arsenal da teoria literária e da semiótica.
Mesmo nos textos de argumentação mais cerrada, porém,
ele se guia pelo prazer de gazetear, deixa-se levar pela livre
associação de idéias e consegue, assim, vazar sua enorme
erudição por meio da "causerie", do bate-papo -enfim, da
arte da conversação.
Nessa escrita lábil, digna da
melhor tradição ensaística, o
assunto muitas vezes é deflagrado por reminiscências pessoais -como em "Frankenstein e o Tigre", no qual uma
noite de insônia em que rabiscava a tradução do poema "The
Tyger", de William Blake, leva
Paes a reflexões sobre o romance de Mary Shelley.
Poesia antimonarquista
O anedótico comparece em
"O Régio Saltimbanco", texto
sobre os "alexandrinos clangorosos" em que o obscuro António Fontoura Xavier desce o
sarrafo em d. Pedro 2º, abrindo
uma série de poemas antimonarquistas analisados por Paes.
Mas é nos ensaios mais
abrangentes -como "Um
Aprendiz de Morto" (interpretação de "Memorial de Aires",
de Machado de Assis) ou "A
Tradução Literária no Brasil"
(escrito por um autor que traduzia do latim, do grego moderno e do dinamarquês!)- que
está o maior interesse desse
"Armazém Literário".
Infelizmente, falta à coletânea o artigo "Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento (Ou: o Mordomo Não É o
Único Culpado)", do livro "A
Aventura Literária" -misto de
sociologia da leitura e ensaio de
estética que defende a idéia de
que os adeptos da alta literatura surgem do leitorado de romances policiais e de aventura.
Mas o volume inclui um texto igualmente fundamental: "O
Pobre-diabo no Romance Brasileiro". Analisando os romances "O Coruja", de Aluísio Azevedo, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", de Lima
Barreto, "Os Ratos", de Dionélio Machado, e "Angústia", de
Graciliano Ramos, José Paulo
Paes identifica uma linhagem
de anti-heróis nacionais cujas
existências fracassadas (nem
vítimas, nem carrascos) são a
representação ficcional do
"frustrado papel de vanguarda
que a pequena-burguesia teve
em nossa dinâmica social".
O texto é emblemático da
dicção de José Paulo Paes. Associa acuidade analítica, repertório bibliográfico e ironias sobre a condição do intelectual
brasileiro (esse pobre-diabo letrado e sem leitor) a um estilo
que corresponde exatamente à
fórmula empregada por Alexandre Eulalio para definir o
ensaio: "prosa literária de não-ficção".
(MANUEL DA COSTA PINTO)
ARMAZÉM LITERÁRIO
Autor: José Paulo Paes
Organização: Vilma Arêas
Editora: Cia. das Letras
Quanto: R$ 37 (312 págs.)
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