São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2008

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Em ensaios, Paes pratica arte da conversação

Antologia de textos mostra equilíbrio entre o rigor analítico e a informalidade

"Armazém Literário" traz notas sobre "Frankenstein" e linhagem de anti-heróis na literatura brasileira, de "O Coruja" a "Angústia"


COLUNISTA DA FOLHA

Textos de crítica literária escritos com alma de ensaísta.
Essa é uma definição possível para a antologia "Armazém Literário", de José Paulo Paes, lançada com o volume de sua "Poesia Completa".
A definição exige um breve comentário. O termo "ensaio" designa um gênero específico, que surgiu no século 16 com Montaigne e se aplica a textos de caráter digressivo, meditações nas quais importa menos o tema abordado do que o movimento da escrita, o fluxo errante do pensamento. Com a especialização universitária, a palavra passou a designar qualquer artigo curto, sem pretensão científica, mas com objeto definido e rigor analítico herdados das práticas acadêmicas. Com isso, perdeu-se aquilo que fez do ensaio uma das mais ricas tradições da literatura: o espírito informal, o sentido de anotação, um subjetivismo cético em relação a juízos categóricos, as hesitações e os impasses explicitados na página impressa.
Os textos de "Armazém Literário" expressam bem essas duas acepções. Contemporâneo das grandes correntes da teoria literária (formalismo, estruturalismo e outros "ismos"), José Paulo Paes escreveu análises de autores como Machado de Assis, Murilo Mendes e Jorge de Lima, ou sobre temas como o surrealismo no Brasil, que utilizam todo o arsenal da teoria literária e da semiótica.
Mesmo nos textos de argumentação mais cerrada, porém, ele se guia pelo prazer de gazetear, deixa-se levar pela livre associação de idéias e consegue, assim, vazar sua enorme erudição por meio da "causerie", do bate-papo -enfim, da arte da conversação.
Nessa escrita lábil, digna da melhor tradição ensaística, o assunto muitas vezes é deflagrado por reminiscências pessoais -como em "Frankenstein e o Tigre", no qual uma noite de insônia em que rabiscava a tradução do poema "The Tyger", de William Blake, leva Paes a reflexões sobre o romance de Mary Shelley.

Poesia antimonarquista
O anedótico comparece em "O Régio Saltimbanco", texto sobre os "alexandrinos clangorosos" em que o obscuro António Fontoura Xavier desce o sarrafo em d. Pedro 2º, abrindo uma série de poemas antimonarquistas analisados por Paes.
Mas é nos ensaios mais abrangentes -como "Um Aprendiz de Morto" (interpretação de "Memorial de Aires", de Machado de Assis) ou "A Tradução Literária no Brasil" (escrito por um autor que traduzia do latim, do grego moderno e do dinamarquês!)- que está o maior interesse desse "Armazém Literário".
Infelizmente, falta à coletânea o artigo "Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento (Ou: o Mordomo Não É o Único Culpado)", do livro "A Aventura Literária" -misto de sociologia da leitura e ensaio de estética que defende a idéia de que os adeptos da alta literatura surgem do leitorado de romances policiais e de aventura.
Mas o volume inclui um texto igualmente fundamental: "O Pobre-diabo no Romance Brasileiro". Analisando os romances "O Coruja", de Aluísio Azevedo, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", de Lima Barreto, "Os Ratos", de Dionélio Machado, e "Angústia", de Graciliano Ramos, José Paulo Paes identifica uma linhagem de anti-heróis nacionais cujas existências fracassadas (nem vítimas, nem carrascos) são a representação ficcional do "frustrado papel de vanguarda que a pequena-burguesia teve em nossa dinâmica social".
O texto é emblemático da dicção de José Paulo Paes. Associa acuidade analítica, repertório bibliográfico e ironias sobre a condição do intelectual brasileiro (esse pobre-diabo letrado e sem leitor) a um estilo que corresponde exatamente à fórmula empregada por Alexandre Eulalio para definir o ensaio: "prosa literária de não-ficção". (MANUEL DA COSTA PINTO)

ARMAZÉM LITERÁRIO
Autor: José Paulo Paes
Organização: Vilma Arêas
Editora: Cia. das Letras
Quanto: R$ 37 (312 págs.)



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