São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2008

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LIVROS

Crítica/"Deu no New York Times"

Rohter mostra seu lado "crioulo doido"

Livro do ex-correspondente do "NYT" no Brasil tem boas reportagens, mas faz interpretações risíveis sobre situações do país

PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO

Em uma das cenas do filme "Correspondente Estrangeiro" (1940), de Alfred Hitchcock, o editor poderoso em Nova York explica por que prefere um repórter no exterior a um correspondente estrangeiro. "Eu não quero correspondência, eu quero notícia", define.
Muitos dos jornalistas que atuam no exterior são mais correspondentes do que repórteres, no sentido que retalham e colam informações e as enviam para suas sedes sem se preocupar com uma apuração própria.
Não é o caso de Larry Rohter, 58, que está lançando "Deu no New York Times", com reportagens e reflexões sobre sua atuação como repórter do jornal americano no Brasil entre 1999 e 2007.
Rohter, casado com uma brasileira, relata no livro suas experiências no país desde o momento em que aqui chegou pela primeira vez a trabalho, em 1972. Muitas das reportagens se enfraqueceram com o tempo, mas, agora, reunidas, ainda permitem reconhecer que havia por trás delas um bom repórter.
O problema do livro -escrito em inglês e traduzido para o português- é que Rohter, que voltou a viver nos EUA, é mais talentoso como jornalista do que como pensador. Suas reflexões sobre a vida no Brasil são menos interessantes e mais generalistas e contestáveis do que os fatos que reportou.

"Zunzum" na Presidência
O capítulo mais interessante é aquele em que se manifesta pela primeira vez a respeito de sua reportagem mais polêmica sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: "Gosto do dirigente brasileiro pela bebida torna-se preocupação nacional" ("NYT", 9 de maio de 2004), na qual afirmava que "sempre que possível, a imprensa brasileira publica fotos do presidente com olhos turvos ou rosto avermelhado, e constantemente faz referências aos churrascos de fim de semana na residência presidencial, em que a bebida corre livremente, e aos eventos oficiais em que Lula nunca parece estar sem um drinque na mão".
Como reação, o governo tentou expulsar Rohter, numa trapalhada jurídica autoritária que se tornou mais errônea do que a reportagem em si, construída a partir de relatos anônimos e impressionismos incomprováveis, "zunzum", como definiu o próprio repórter.
Rohter classifica o que se seguiu como uma "explosão de nacionalismo, parte dela bastante hipócrita" e admite que o título do texto não era correto.
"Na matéria em si, eu era explícito em declarar que o zunzum a respeito do hábito de beber de Lula estava basicamente confinado a políticos e jornalistas e mal era percebido pela população em geral", escreve.
Um exemplo de que as reflexões de Rohter são piores do que suas reportagens é o fato de atribuir o "verdadeiro motivo" para sua tentativa de expulsão a uma reportagem que fez sobre o assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André ("Morte do prefeito no Brasil suscita acusações de corrupção", 1º de fevereiro de 2004).
Nesse texto, não havia nenhuma informação que a imprensa brasileira não houvesse publicado três meses antes.
Mas Rohter diz ter sentido "o cheiro do rato": "Eu estava chegando perigosamente perto de expor acidentalmente um dos principais pilares de financiamento do esquema do mensalão", afirma ele, de modo narcísico e ingênuo. Mais saborosas são as reportagens sobre o descaso com o futebol feminino, a respeito do gravurista e cordelista nordestino José Francisco Borges ou o texto que despertou o interesse de Tom Waits para a caixa de CDs "Música Tradicional do Norte e Nordeste", resultado de missão folclórica enviada em 1938, pelo então secretário de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade -lançamento do Sesc de 2006 ignorado, por exemplo, por esta Folha.
As reportagens de Rohter têm erros -como dizer que Gilberto Gil foi o primeiro ministro negro brasileiro, esquecendo-se de Pelé na gestão FHC-, mas possuem mais qualidades do que suas reflexões, que beiram o "samba do crioulo doido" -para usar expressão racial e culturalmente incompreensível para um estrangeiro.
Atribui, por exemplo, o boom de forró entre os jovens no Brasil ao fato de artistas estrangeiros -como Peter Gabriel e David Byrne- terem recorrido ao ritmo em discos de sucesso (no exterior, mas não aqui). Simplificação absurda que se repete quando diz que só quando o samba "ganhou aprovação na Europa os brasileiros se dispuseram a abraçá-lo como deles".
"Foi preciso o imprimátur da França para tornar o samba palatável a uma elite relutante a aceitar sua própria identidade", escreveu, mostrando que um branco de Chicago pode assumir o papel do crioulo doido na interpretação da história.

DEU NO NEW YORK TIMES
Autor: Larry Rohter
Tradução: Otacílio Nunes, Daniel Estill, Saulo Adriano e Antonio Machado
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 39,90 (416 págs.)
Avaliação: regular



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