São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2008

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O sertão vira mar de cultura em mostra de artes de Cariri

Direto de festival no agreste nordestino, o músico Lucas Santtana narra reação do público, que lota peças na madrugada e se diverte em "baladas dionisíacas"

LUCAS SANTTANA
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM CRATO (CE)

Pela tela quadrada da janela da van, após desembarcar no aeroporto de Juazeiro do Norte, o que se vê no percurso de 30 minutos até a cidade de Crato é uma paisagem bem diferente de filmes como "Cinema, Aspirinas e Urubus". No sertão de Cariri (sul do Ceará), a paisagem é verdinha e, na Chapada do Araripe, divisa com Pernambuco, Paraíba e Piauí, existem até espécies da mata atlântica.
Quando o ator João Miguel voltou de lá em 2002 e me disse que existia em pleno sertão brasileiro uma megamostra de artes abrangendo teatro, música, artes plásticas, audiovisual, fotografia e literatura, não duvidei, mas fiquei espantado pelo tamanho do evento.
Neste ano, são 1.500 artistas provenientes de 17 Estados brasileiros e quatro países (Espanha, França, Portugal e Argentina), apresentando seus trabalhos no evento que se encerra hoje (programação em mostracariri.wordpress.
com). São 43 espaços em 12 cidades, sendo que o grosso se concentra em Juazeiro do Norte, Crato e Nova Olinda.
A atriz espanhola Nereida Baros, do grupo Nutteatro, diz estar impressionada com o acolhimento para vários tipos de propostas artísticas diferentes. O diretor Carlos Neira, da Companhia da Galícia, completa: "Na Espanha, não há nada parecido em termos de estrutura e diversidade".
Se não faltam atrações, tampouco falta público. Mesmo as peças apresentadas à meia-noite, durante a semana, ficam lotadas, e é preciso garantir o ingresso com antecedência.
A primeira coisa que salta aos olhos aqui é o caráter popular da mostra. Não se trata de um festival para "entendidos", no qual a "nata" da "classe" celebra o seu encontro.
Não importa se é o teatro de mímica do grupo francês Dos a Deux ou o som surround do ritual dos índios Karajá na praça central, todos querem ver, ouvir e ter aquela vivência. Os filhos do taxista que pega você no hotel na véspera podem ser encontrados na adaptação de Dom Quixote feita pelo grupo Teatro que Roda, de Goiânia, no dia seguinte.
Dane de Jade, gerente de cultura do Sesc Ceará e criadora, há dez anos, da Mostra Sesc Cariri de Cultura, diz não ver sentido na vida se não for por meio da arte: "Há uma longa estrada pela frente para formar o hábito de pensar cultura como um direito social".
Se formos analisar a mostra do ponto de vista da economia da cultura após esses dez anos, tomamos conhecimento, por meio de dados da prefeitura, que o comércio, a hotelaria e os vínculos empregatícios sobem 70% nesse período.
Contribuem também para isso vários atrativos da região, alguns naturais, como a cachoeira de Missão Velha, as caldas naturais da cidade de Barbalha, o Geopark do Araripe (patrocinado pelas Nações Unidas) e fósseis de pterossauros do período Cretáceo (há cerca de 110 milhões de anos) em Santana do Cariri.
O Cariri é um pólo de mestres de reisados, bandas de pífano, bacamarteiros e artesãos. Durante a mostra, é impensável não participar das terreiradas, quando se abrem os quintais das casas e com lindas cantigas e indumentárias são celebradas tradições orais seculares passadas de pais a filhos. Após um dia inteiro de acontecimentos paralelos, todos os caminhos levam ao Crato Tênis Clube, onde os artistas que se apresentam se misturam com a população para curtir baladas dionisíacas.
Todos querem conversar, perguntar, entender, dançar, beber e rir juntos. Como dizem os cearenses: "Tem coisa melhor? Pense...".

LUCAS SANTTANA é músico e foi uma das atrações da Mostra Cariri



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