São Paulo, Quarta-feira, 15 de Dezembro de 1999


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LITERATURA
Ariano e Raduan falam de cabras e Dostoiévski

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Ariano Suassuna (à esq.) recebe em sua casa, no Recife, Raduan Nassar, para quem mostrou material do livro inacabado que iniciou em 81


da enviada a Recife

Leia a seguir a continuação da conversa entre os autores Ariano Suassuna e Raduan Nassar, que se conheceram em Recife, na semana passada.
(MARILENE FELINTO)

Raduan Nassar - É, exato, tomando leite de cabra. Aliás, eu perguntei ontem onde está a sua criação de cabras. E me disseram que está na Paraíba. Mas eu não podia voltar para São Paulo sem ver sua criação de cabras. Isso seria uma coisa maravilhosa.

Ariano Suassuna - Se você demorar, a gente vai lá, não tenha dúvida. Se quiser, nós vamos.

Nassar - Numa próxima vez, eu gostaria muito de ir. Agora, dessa vez, uns amigos meus lá de Maceió vão me levar até o sertão.

Suassuna - Não, mas aí tinha de ser ao sertão de Taperoá. É só você mandar dizer quando quer ir que nós vamos, ficamos lá o tempo que você quiser. Aliás, eu vou buscar um retrato da casa da fazenda para você ver (sai da sala).

Nassar - Eu gostaria de criar gado também, mas como nós estamos fazendo muita lavoura lá, eu precisava ter um espaço compatível com a criação; não é? Como a gente tem muita vegetação, árvores e lavoura, torna-se muito difícil... A menos que se fosse fazer uma criação de cabras confinadas. Mas aí já fica com um ar meio industrial. Eu gostaria mesmo era de recuperar a minha infância, a minha relação afetiva com as cabras e, eu espero que isso não seja mal interpretado... (risadas na sala). É que a cabra para mim é uma imagem que toca fundo mesmo, é uma coisa impressionante.

Suassuna - Olhe, Raduan, eu não sou tão radical quanto você não, mas eu vou dizer como comecei o negócio de criar cabras. Eu tenho um irmão que é um sujeito inconveniente. Inclusive ele vem me visitar, ele chega na hora em que está todo mundo já saindo da visita. Ele chega 10h30, 11 horas da noite. Aí, um dia, e você veja se isso é jeito de entrar na casa dos outros, um dia ele foi entrando aqui e me perguntou: "Ariano, me diga uma coisa, o que é que você faz?". E eu respondi: "Eu dou aula de filosofia da arte na universidade e escrevo; é isso aí". Então ele disse: "Isso não vale nada. Se você está lá na universidade ou está aqui, a sociedade nem sabe. Eu vou dizer uma coisa, só existem duas profissões realmente importantes, o lavrador e o criador. Todas as outras são parasitárias. Se eles pararem, aí você vai ver uma coisa".

Nassar - Realmente. São ciências primordiais.

Suassuna - Não é? Aí eu disse a meu irmão: "Tem razão". E no outro dia comecei a criação de cabras. E eu escolhi cabra exatamente também por causa dessa relação afetiva. Inclusive, Raduan, eu só queria um tipo de cabra, que era uma cabra vermelha que tem lá, da cor do chão do sertão, um vermelhão pardo, com uma lista preta no dorso e os quatro canos, as quatro patas, também escuros. Agora, você veja, nessa época, a gente se deparou logo com a total ignorância que existe sobre cabras. Os agrônomos, zootecnistas e veterinários não entendem nada sobre cabra. São agrônomos de "bureau", de gabinete, uns burocratas. E a idéia deles era importar cabra. Nessa época tinha um primo meu que era presidente da Associação Paraibana de Criadores de Cabra. Então ele me levou uma carta da empresa exportadora da Suíça. Nesse ano eles tinham o propósito de vender para nós cem animais, dez machos e 90 fêmeas. Vender para a Paraíba. Então cada animal custava R$ 176 mil, ou melhor, reais não, cruzeiros; não é? Cruzeiros. E entregavam no porto de Santos. A gente ainda tinha o trabalho de mandar buscar, de se responsabilizar pelo transporte desses animais. Aí eu disse: "Quanto está uma cabra aqui no Brasil?". Aí ele disse: "Cr$ 5 mil, mas as daqui não prestam". Aí eu disse: "Me diga uma coisa, a cabra daqui tem chifre?". E ele: "Tem". "Tem peito?" "Tem." "Se ela cruzar com um bode, nasce um cabrito?" "Nasce." "Então qual é o problema?", eu disse. Aí ele: "Mas as daqui dão pouco leite". Eu disse: "Quanto é que dão as daí da Suíça?". Ele disse: "Dão três quilos por dia, em duas tiradas". "E as daqui?" "Dão 500 gramas." Aí, eu disse: "Então eu compro seis cabras daqui por Cr$ 30 mil e faço os três quilos". Quer dizer, uma cabra suíça eu faço com Cr$ 30 mil. Ainda fica uma diferença, já que só uma de lá custa Cr$ 176 mil. Então, eu disse a ele: "Agora, esse ano, eu vou precisar de seis cabras daqui para fazerem uma cabra suíça. Agora, para o ano que entra, uma minha vai estar dando mais do que seis suíças". Ele disse: "Por quê?". Eu disse: "Porque a sua morreu, e uma cabra morta, por melhor que seja, pode ser suíça, o que for, ela não dá 500 gramas de leite" (risadas na sala).

Nassar (olhando fotos das cabras) - São pastagens nativas? Praticamente não se vê vegetação de porte.

Suassuna - É que aqui elas estão num lugar um pouquinho melhor, mas é caatinga mesmo, não tem muita vegetação; não é? Elas já estão dando dois quilos e 800 gramas de leite. E a gente não consegue mais porque a gente não quer, Raduan, porque se a gente refinar muito na produção de leite, ela perde resistência, tem de ser uma coisa equilibrada.

Nassar - É aí que entra a introdução do sangue novo, não é? Pode entrar com um reprodutor. Basta um reprodutor; não é?

Suassuna - Entrou. Entrou aqui; viu? Foi exatamente esse cabrito aqui (mostra foto), uma raça homóloga. Porque eu descobri, Raduan, que só existem duas raças de cabra, a raça asiática e a européia. A nossa é a européia, que é a pirenaica. Eu arranjei um reprodutor de linhagem leiteira e do meu jeito. Uma raça que tem uma listra escura, que é esse cabrito aqui (mostra foto). Eu ganhei ele de presente. E no dia que eu ganhei, para celebrar o presente, os meus amigos que me deram me abriram um queijo de cabra da Serra da Estrela, em Portugal, e um deles disse para mim -e você veja, Raduan, como a literatura é um vício doentio-, ele disse para mim: "Esse queijo me foi dado pelo bisneto de Almeida Garret". Foi aí que batizei o bicho, o reprodutor, de Garret (risadas na sala).

Nassar - E ele agora está lá ou já morreu?

Suassuna - Ele já morreu, mas deixou 52 fêmeas, além dos machos. E ele fez com as vermelhas, com as brancas e com as pretas. Depois de aprontar o trabalho com a vermelhas, foi com as brancas e as pretas, para prestar homenagem ao Brasil, não é? Às três raças (risadas).

Nassar - O plantel tem quantas cabeças hoje?

Suassuna - Tem umas 1.200. As brancas estão separadas; não é? Agora, para melhorar as pretas, a gente trouxe murciana, que é uma cabra espanhola, que é do mesmo tronco e é muito boa e resistente. A murciana acho que é a melhor cabra do mundo. Mas quando a gente estava fazendo o rebanho, viu, Raduan, chegavam uns amigos meus com uma história de POI, animal POI, puro de origem importada.

Nassar - É, tem o POI e o PI.

Suassuna - Exatamente. Mas eu tenho um amigo que dizia assim: "Não, é POD, puro de origem daqui mesmo" (risadas na sala).

Nassar - Mas vocês fazem reprodutoras para terceiros?

Suassuna - Sim, sim, fazemos.

Nassar - Agora, a carne de cabrito eu acho levíssima, excelente. Eu acho a melhor carne, depois da de peixe. Muito leve, muito saborosa. Mas não é bom falar em corte, não é, para o criador?

Suassuna - Sim, porque a gente não mata muito. Sou mais criador. A gente faz queijo também.

Nassar - Ariano, você fez um pronunciamento, nos anos 80, que foi o que mais me impressionou, quando você disse que não queria mais receber livros, que não queria saber de literatura, e eu carrego essa sua fala comigo pela vida. Então (entrega exemplar de "Lavoura Arcaica" a Ariano), isso aqui não é um livro. Não interprete como livro, por favor. (Ariano gargalha, risadas na sala.)

Folha - Faz de conta que é uma cabra. (Mais risadas na sala.)
Suassuna -
Isso, exato. É uma cabra. Mas você me ofereceu (procurando dedicatória no livro)? Ah, está oferecido, ótimo.

Nassar - Foi um pretexto para registrar a minha presença aqui.

Suassuna - Ora, mas você sabe. Você sabe o que eu penso dessa cabra (risadas).

Nassar - Aliás tem uma cabra aí (referindo-se a capítulo de "Lavoura Arcaica" que tem uma cabra como tema).

Suassuna - Mas eu dei uma entrevista a Pedro Bial em que disse que "Lavoura Arcaica" é uma das coisas que me fazem acreditar no Brasil e no povo brasileiro.

Nassar - Eu soube disso, mas não vi a entrevista.

Pergunta - Mas, Raduan, e você parou mesmo de escrever?

Nassar - Ah, é definitivo. Eu parei em 84. Estou muito envolvido com a agricultura hoje.

Pergunta - Você seguiu o conselho do irmão de Ariano, então.
Nassar -
Ah, foi (rindo). Ele é que é realmente um filósofo da arte. Arte, se não existir, não faz falta. As pessoas estranham, mas essas coisas... Elas têm uma dificuldade de entender que isso aí pode ser um motivo de paixão também. E que um dia acaba.

Suassuna - Pois é. É verdade mesmo.

Nassar - Eu não sou, por exemplo, como Osman Lins, de quem eu estive muito próximo no último ano de vida dele. Ele era um apaixonado por literatura, ele falaria 24 horas por dia sobre literatura se deixassem. Eu, ao mesmo tempo que tive muita paixão pela literatura, aliás houve um período da minha vida em que eu não conseguia pensar em outra coisa, houve inclusive uma série de recusas em relação a muitas oportunidades, tudo para poder me dedicar à literatura, ao mesmo tempo, eu sempre tive muita dificuldade de privilegiar o escritor como os escritores se privilegiam. Tenho muita dificuldade de hierarquizar profissões. Eu acho que, como diz o Ariano, o agricultor é tão ou mais importante.

Suassuna - Eu não sei se você sabe disso, Raduan, mas no caminho daqui para a Paraíba tem uma casa inacabada. Na estrada a gente passa por ela. O dono sonhou que, quando acabasse a casa, ele morreria. Aí ele resolveu não acabar a casa nunca. Pois eu desconfio que estou fazendo a mesma coisa com esse livro que estou escrevendo agora, que já faz muitos anos que venho escrevendo e que não tem título ainda. Eu resolvi não morrer, não sei se a morte vai aceitar, se ela está de acordo. Mas eu acho que vou ficar fazendo ele, como o homem da casa, para ver se eu escapo.

Pergunta - É um romance urbano?
Suassuna -
Não. É não. Porque, veja bem, acontece que eu não considero "A Pedra Do Reino" um romance rural. Agora o que acontece com esse novo é que o Recife vai junto, explicitamente, porque implicitamente no "A Pedra do Reino" ela já está.

Folha - Há quantos anos está escrevendo?
Suassuna -
Minha querida, nem pergunte. Eu comecei aí por 81. Foi naquela época em que disse que não escrevia mais, para ver se o povo me deixava sossegado. Mas não adiantou.

Pergunta - O trabalho na secretaria atrapalhou? (Suassuna foi secretário de Cultura do governo de Miguel Arraes, em Pernambuco, de 94 a 98).
Suassuna -
Eu não me queixo não, porque o próprio universo do romance foi enriquecido pela experiência da secretaria. Foi prejudicial do ponto de vista da escrita, mas como experiência valeu. Agora, trabalhar eu trabalhei mesmo na secretaria. Até meus inimigos não têm como dizer que não. Eles podem até dizer que eu trabalhei errado e mal. Mas negar que eu trabalhei eles não podem. Realmente eu trabalhei. E eles não perdem por esperar, porque no romance eles vão aparecer (risadas). E não vão aparecer bem não, eu garanto. Mas hoje ninguém lê mais romance grande. Eu gosto de romance grande.

Nassar - Mas essa questão do romance grande ou pequeno, quando o romance é bom, a gente não quer que ele acabe, não é?

Suassuna - É. Isso é. Só que eu não posso partir desse pressuposto; não é? Porque assim eu estou perdido. Mas você sabe, Raduan, eu tive uma experiência terrível.
Eu também dei aula de literatura brasileira, no curso de letras. Um dia, nós íamos estudar o Romantismo no Brasil. Aí eu dei uma aula lá dizendo que considerava José de Alencar o escritor mais significativo do Romantismo brasileiro.
Normalmente ele é olhado com desprezo, mas eu não tenho esse desprezo, não. Porque ele inclusive foi o primeiro escritor que conseguiu dar uma visão do Brasil.
Os romances indianistas dele são os escombros de um poema épico em prosa que ele queria escrever chamado "Os Filhos de Tupã", e que apresentaria o Brasil antes dos portugueses.
Foi daí que vieram "Ubirajara", "Iracema", "O Guarani" etc. etc. "Os Filhos de Tupã" acontecia na Amazônia, "O Sertanejo" é no Ceará, "A Guerra dos Mascates" se passa aqui, no Recife. "As Minas de Prata", na Bahia. "O Tronco do Ipê" tem uma passagem em São Paulo e no Rio; não é? E "O Gaúcho" no Rio Grande do Sul.
Quer dizer, ele procurou cobrir todo o espaço e, além do mais, o próprio tempo. Quer dizer, ele fez "Os Filhos de Tupã" em uma ação anterior à chegada dos portugueses. "O Guarani" é a chegada dos portugueses e o começo da miscigenação, no século 16. Em "As Minas de Prata", ação é no século 17. Em "O Sertanejo", no 18.
E os romances urbanos são no século 19. Além disso, ele fundou o romance regionalista, com "O Tronco do Ipê", e fundou o romance urbano, com "Senhora". Então, eu disse lá aos meus alunos: "Eu vou querer que vocês leiam dois livros dele para a gente fazer uma comparação, "O Guarani" e o "Sertanejo'".
E eu era tido como um professor liberal. Quando eu disse, no curso de letras, você imagina, que eu queria esses dois livros, eles se revoltaram. "Mas, Ariano, até você, rapaz!", eles disseram. "De você a gente não esperava isso não. Esses professores daqui estão uma coisa horrorosa, é livro a toda hora, a gente não aguenta mais. Uma perseguição dessa, a gente não esperava de você não".
Aí eu disse: "Mas vocês, vocês são do curso de letras. Olhem, eu também dou aula no curso de arquitetura. Vocês imaginem se os alunos de arquitetura se recusassem a fazer maquete. Não pode". Aí, pergunta geral: "Qual dos dois livros é o mais fino?".
Era isso, eles queriam ler um livro fino. As pessoas ficam zangadas comigo porque eu não escrevo como Graciliano Ramos, porque eu não tenho um estilo conciso. Mas eu não posso escrever como ele, porque eu sou uma outra pessoa; não é?

Nassar - Pois é. E o trabalho com a linguagem pode ser uma fonte de desfrute, mas eu acho que o que pega mesmo o leitor é sobretudo a história. Tanto que certos livros de autores estrangeiros que fazem parte da formação da gente, nós lemos em traduções, numa linguagem quase convencional. E às vezes até por meio de más traduções.

Suassuna - Não sei se você sabe que acusavam o Dostoiévski de escrever mal. Uma vez eu li ele se defendendo disso que, aliás, não é verdade. Ele era, além de grande escritor, quase profeta, um escritor hábil, que escrevia verdadeiros romances policiais. Mas, Raduan, uma vez você disse numa entrevista uma coisa sobre a família que me tocou muito. Eu também sou daquele jeito. Por isso mesmo sou acusado de arcaico.

Nassar - Então somos dois.

Suassuna - Mas agora eu vou pegar para vocês verem, uma versão desse romance que estou escrevendo mas que abandonei. (Sai da sala e volta trazendo grandes pastas onde guarda textos, poemas e iluminogravuras que comporiam o novo romance.)

Nassar (vendo o material) -Mas isso é uma maravilha, olha só.

Suassuna - Mas me diga se esse seu novo amigo aqui tem juízo, porque isso aqui (as grandes folhas de iluminogravuras) a gente não tem nem como ler. Essas seriam algumas das ilustrações do romance. Você imagine a doidice.

Nassar - E são suas as ilustrações?

Suassuna - É, são minhas.

Nassar (vendo ilustrações com motivos eróticos) - Mas isso é uma maravilha. Isso tem de ser visto com calma, vá mais devagar. Tem uns detalhes ótimos, viu, Ariano? (Gargalha.) Eu gostaria de ver sozinho. (Gargalhadas na sala.) Tem muita descoberta para fazer aqui. Ninguém escapa ao fascínio do obsceno, não é ?

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