São Paulo, Quarta-feira, 15 de Dezembro de 1999


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MARCELO COELHO
O modelo malufista agora inspira Collor

Os argentinos gostam de dizer que Carlos Gardel, morto na década de 30, a cada ano que passa está cantando melhor. Com o governo Collor ocorre o contrário: continua piorando depois que acabou.
Claro que, na época, eu tinha consciência do quanto Collor era horrível, farsesco e protofascista. Mas hoje sinto que era bastante pálida minha reação diante do que acontecia.
"Como você conseguia viver sob o regime de Hitler?" -essa pergunta, que temos a tentação de fazer a todo alemão mais ou menos esclarecido, que tenha sido contemporâneo do horror nazista, se volta contra mim mesmo. "Bem, vivíamos. Um dia depois do outro... Claro que Hitler era um louco, um assassino... mas enfim..."
É que uma coisa é ter de Hitler a imagem cristalizada, condensada, única, que se constitui depois de sua derrocada. Outra é ir assistindo, passo a passo, ao surgimento de algo que se cria a partir de atos cotidianamente monstruosos, mas que por serem cotidianos, e estarem inscritos numa duração cujo término desconhecemos, ainda têm algo de amorfo, algo de confusamente misturado ao que se chama erradamente de "vida normal".
Repito que achava Collor horrível. Mas, olhando agora, seu governo era "incrivelmente horrível", se posso dizer assim, e não "meramente" horrível, como eu o via na época.
A exemplo dessas minas enterradas no solo de países há anos não mais em guerra, e que continuam explodindo e matando crianças, os estragos de Collor, do esquema PC Farias, da camarilha toda, diariamente se revelam em novos escândalos, que vão do narcotráfico internacional à micropistolagem alagoana.
Não deixa de ser simbólico que um médico legista seja peça-chave (para dizer o mínimo) nas investigações em curso. Pois é como se estivéssemos assistindo à autópsia de um governo que se recusa a ser enterrado.
Dizem que Graciliano Ramos, alagoano de Quebrangulo, olhava para o mapa de seu Estado natal e comentava secamente: "Bom lugar para se fazer um golfo".
Antes que me chamem de preconceituoso, observo que um Estado que produziu Quércia e Paulo Maluf não tem nada do que se orgulhar sob esse aspecto de que estou falando.
A diferença, talvez, é que os esquemas paulistas são complexos demais, com ramificações amplas demais; não produzem diretamente a imagem de "formação de quadrilha" de seu similar alagoano. Imagine-se uma situação em que Quércia e Maluf fossem primos.
Uma foto do enterro de PC Farias (republicada nesta edição da revista "Época") traduz visualmente o que tento dizer. Quatro irmãos do morto seguram o esquife: todos carecas, de barba e de óculos escuros, praticamente iguais, invariáveis, anônimos como cifras num banco suíço.
Volto a dizer, porque sempre acaba aparecendo uma carta com reclamações, que não quero ofender Alagoas nem seu povo; estou falando de uma oligarquia, ou melhor, de um esquema político.
De resto, quem elegeu Collor não foi Alagoas, como sabemos, e sim a direita brasileira em seu todo, com o ouro de São Paulo e a platina carioca.
Uma das muitas heranças desagradáveis do malufismo, por falar em São Paulo, é o elogio abstrato à "persistência" deste ou daquele personagem político. "Maluf pode ter muitos defeitos, mas tem uma qualidade: é persistente." A frase aparece a toda hora, e aos poucos vamos deixando de perceber que é uma imensa bobagem.
Um demônio, um louco, um "serial killer" são "persistentes" -e não há nenhuma qualidade nisso.
O modelo malufista parece agora inspirar Fernando Collor. Sua pretensa candidatura à Prefeitura de São Paulo seria, então, a primeira de muitas -até que um dia, como aconteceu com Maluf, Collor voltaria ao poder.
Não acredito muito que Collor venha a ser candidato; mas esse meu ceticismo não significa grande coisa, pois não consigo sequer acreditar que ele ainda exista. Vejo-o nas fotos e na TV, e seu rosto me parece esmaecido; uma projeção holográfica malfeita, uma daquelas continuações de filme de terror, tipo "Halloween 2000", em cópia de vídeo pirata.
Seu jeito ao mesmo tempo ofendidinho e flácido, o tom da maquiagem -algo como o tom peroba "light" da linha "Maturité" da Revlon-, a voz... A voz continua a mesma: estadista, versão Herbert Richers.
Não, não é um Gardel. Este, no tango "Volver", dizia que "20 años no es nada". Espero que Collor "no vuelva", e que os próximos 20 anos, e os outros 20, "le duelan" bastante.


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