|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
O modelo malufista agora inspira Collor
Os argentinos gostam de dizer
que Carlos Gardel, morto na década de 30, a cada ano que passa
está cantando melhor. Com o governo Collor ocorre o contrário:
continua piorando depois que
acabou.
Claro que, na época, eu tinha
consciência do quanto Collor era
horrível, farsesco e protofascista.
Mas hoje sinto que era bastante
pálida minha reação diante do
que acontecia.
"Como você conseguia viver sob
o regime de Hitler?" -essa pergunta, que temos a tentação de fazer a todo alemão mais ou menos
esclarecido, que tenha sido contemporâneo do horror nazista, se
volta contra mim mesmo. "Bem,
vivíamos. Um dia depois do outro... Claro que Hitler era um louco, um assassino... mas enfim..."
É que uma coisa é ter de Hitler a
imagem cristalizada, condensada, única, que se constitui depois
de sua derrocada. Outra é ir assistindo, passo a passo, ao surgimento de algo que se cria a partir de
atos cotidianamente monstruosos, mas que por serem cotidianos,
e estarem inscritos numa duração
cujo término desconhecemos, ainda têm algo de amorfo, algo de
confusamente misturado ao que
se chama erradamente de "vida
normal".
Repito que achava Collor horrível. Mas, olhando agora, seu governo era "incrivelmente horrível", se posso dizer assim, e não
"meramente" horrível, como eu o
via na época.
A exemplo dessas minas enterradas no solo de países há anos
não mais em guerra, e que continuam explodindo e matando
crianças, os estragos de Collor, do
esquema PC Farias, da camarilha
toda, diariamente se revelam em
novos escândalos, que vão do narcotráfico internacional à micropistolagem alagoana.
Não deixa de ser simbólico que
um médico legista seja peça-chave
(para dizer o mínimo) nas investigações em curso. Pois é como se estivéssemos assistindo à autópsia
de um governo que se recusa a ser
enterrado.
Dizem que Graciliano Ramos,
alagoano de Quebrangulo, olhava
para o mapa de seu Estado natal e
comentava secamente: "Bom lugar para se fazer um golfo".
Antes que me chamem de preconceituoso, observo que um Estado que produziu Quércia e Paulo Maluf não tem nada do que se
orgulhar sob esse aspecto de que
estou falando.
A diferença, talvez, é que os esquemas paulistas são complexos
demais, com ramificações amplas
demais; não produzem diretamente a imagem de "formação de
quadrilha" de seu similar alagoano. Imagine-se uma situação em
que Quércia e Maluf fossem primos.
Uma foto do enterro de PC Farias (republicada nesta edição da
revista "Época") traduz visualmente o que tento dizer. Quatro
irmãos do morto seguram o esquife: todos carecas, de barba e de
óculos escuros, praticamente
iguais, invariáveis, anônimos como cifras num banco suíço.
Volto a dizer, porque sempre
acaba aparecendo uma carta com
reclamações, que não quero ofender Alagoas nem seu povo; estou
falando de uma oligarquia, ou
melhor, de um esquema político.
De resto, quem elegeu Collor
não foi Alagoas, como sabemos, e
sim a direita brasileira em seu todo, com o ouro de São Paulo e a
platina carioca.
Uma das muitas heranças desagradáveis do malufismo, por falar
em São Paulo, é o elogio abstrato
à "persistência" deste ou daquele
personagem político. "Maluf pode
ter muitos defeitos, mas tem uma
qualidade: é persistente." A frase
aparece a toda hora, e aos poucos
vamos deixando de perceber que é
uma imensa bobagem.
Um demônio, um louco, um "serial killer" são "persistentes" -e
não há nenhuma qualidade nisso.
O modelo malufista parece agora inspirar Fernando Collor. Sua
pretensa candidatura à Prefeitura
de São Paulo seria, então, a primeira de muitas -até que um
dia, como aconteceu com Maluf,
Collor voltaria ao poder.
Não acredito muito que Collor
venha a ser candidato; mas esse
meu ceticismo não significa grande coisa, pois não consigo sequer
acreditar que ele ainda exista. Vejo-o nas fotos e na TV, e seu rosto
me parece esmaecido; uma projeção holográfica malfeita, uma daquelas continuações de filme de
terror, tipo "Halloween 2000", em
cópia de vídeo pirata.
Seu jeito ao mesmo tempo ofendidinho e flácido, o tom da maquiagem -algo como o tom peroba "light" da linha "Maturité" da
Revlon-, a voz... A voz continua
a mesma: estadista, versão Herbert Richers.
Não, não é um Gardel. Este, no
tango "Volver", dizia que "20
años no es nada". Espero que Collor "no vuelva", e que os próximos
20 anos, e os outros 20, "le duelan" bastante.
Texto Anterior: Alcântara retrata o perfil cearense Próximo Texto: Morre o filósofo Gérard Lebrun, 69, em Paris Índice
|