São Paulo, sexta-feira, 15 de dezembro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY


Ruy Castro traz Bilac para o seu mural carioca

A idéia inicial foi do editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. Encomendou a um time de bons escritores um livro de ficção policial (ou análogo), em que pelo menos um dos personagens fosse um autor conhecido. Ruy Castro escolheu Olavo Bilac e escolheu bem. Com uma obra centrada no Rio de Janeiro, o mineiro de Caratinga está esboçando um painel colossal da nossa cidade.
Em "Chega de Saudade", é impressionante o desfile de tipos e cenas que fizeram nascer a bossa nova. Em "O Anjo Pornográfico", ressuscita literalmente a vida e a obra de Nelson Rodrigues, que, apesar de pernambucano, fez seus personagens todos -do teatro, da crônica ou do romance- viverem e se dilacerarem no Rio. Em "Garrincha, a Estrela Solitária", é o mundo do futebol, o "pathos" da glória súbita e mal-assumida, um subterrâneo da alma de um passarinho que jogava futebol.
Juntando aos três livros, a enciclopédia de Ipanema ("Ela É Carioca"); Ruy Castro continuou a erguer seu mural carioca que agora ganha uma dimensão inesperada, porque ficcional. O cenário continua sendo o Rio e seus tipos de maior visibilidade ou de folclórica extravagância. Mergulhou fundo na belle époque e escolheu o personagem mais emblemático do período, o poeta parnasiano, vesgo e celibatário, cujo nome completo era um alexandrino perfeito: Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac.
Em volta dele, colocou um "partner" à altura, formando uma dupla que no cinema poderia ser equivalente à do Gordo e do Magro, a Bud Abbott e Lou Costello, a Jack Lemmon e Walter Matthau. E, como esse personagem do Rio real foi nada menos que José do Patrocínio, o Tigre da Abolição que mais tarde se reduziu a Zé do Pato, podemos lembrar outra dupla da tela: Oscarito e Grande Otelo.
Antes de mais nada, deve-se ressaltar duas qualidades quase agressivas de Ruy: o estilo enxuto, cheio de cacos inesperados, próprios dos grandes humoristas norte-americanos; e a preocupação quase exagerada com o rigor histórico, que o acompanha até mesmo nessa sua primeira investida no universo da ficção -por sinal, uma ficção quase desvairada e certamente deliciosa.
Olavo Bilac aparece pela primeira vez de corpo inteiro na literatura nacional, pois, até então, dele só se conhecia o perfil parnasiano. Poeta e cronista, gradativamente reabilitado após o arrasa-quarteirão do modernismo, que fez dele um judas de Sábado de Aleluia, Bilac continua sendo um poeta amado. Dois anos atrás, passeando com Lygia Fagundes Telles em Paris, de repente ela abre a bolsa e me mostra um soneto de Bilac, que ela sempre traz consigo, apesar de sabê-lo de cor.
José do Patrocínio, de corpo e exuberância inteiras, mais algumas pinceladas de Santos Dumont, criam a trindade do romance-bufo de Ruy -e nada há de pejorativo nessa classificação. Em certo sentido, o "Don Giovanni", de Mozart, é uma ópera-bufa, mais ou menos no estilo de "O Barbeiro de Sevilha". "Dom Quixote", de Cervantes; "Tom Jones", de Fielding; "As Viagens de Gulliver", de Swift; ""Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida; e "O Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto, são obras picarescas que resvalam no gênero bufo.
Quando Ruy acabou de escrever sua biografia de Garrincha, passei a cobrar-lhe, como uma espécie de irmão mais velho, o romance que um dia ele escreverá. Apesar da minha cobrança, Ruy preferiu escrever um dicionário sobre Ipanema, onde gastou tempo levantando minibiografias de personagens locais, como Hugo Bidê, que, mesmo em seu tempo de glória, não era conhecido além das fronteiras da praça General Osório.
"Bilac Vê Estrelas" não me surpreendeu. Mostra um Ruy Castro dono de uma fabulosa capacidade de criar tipos e levantar épocas. Conduz a ação num ritmo adequado ao propósito editorial, sabe fazer pausas, cortes e fusões. O final de seu primeiro romance lembra propositadamente as melhores chanchadas da Atlântida: muita confusão, correrias, brigas; fico pensando se Grande Otelo e Ronaldo Lupo, um no papel de José Patrocínio, outro no papel de Bilac, não seriam apropriados para uma versão também alucinada da alucinada história parcialmente inventada por Ruy. Evidente, com Wilson Grey no papel de Santos Dumont.
"Bilac Vê Estrelas" é, além de tudo, um show de inteligência. Fico até com raiva de mim mesmo por não ter tido uma idéia semelhante. O retrato que faz do poeta é perfeito. E, se descamba para a caricatura, é por força da própria história fantástica que ele inventou, lembrando também os filmes de Méliès -que, por sinal, faz uma discreta ponta no romance.
Sou fã assumido de Bilac e agradeço ao Ruy não ter feito nenhuma referência a uma característica do poeta. Além de vesgo, Bilac era prognata. Eu não sabia o que era prognata e imaginei coisa torpe, uma tara abominável. Mais tarde, vim a saber que prognata é ter queixo grande, como o jogador Ademir, que tinha o apelido de Queixada. Eu não perdoaria o Ruy se ele chamasse Bilac de prognata.




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