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DRAUZIO VARELLA
De volta à clonagem
Gostaria de ter um irmão
gêmeo idêntico. Se precisasse de um rim pediria a ele, se tivesse um linfoma podia contar
com a medula óssea dele e nos
aniversários chatos quem saberia
qual dos dois estava lá? Além disso, deve ser engraçado um corpo
idêntico ao seu, com outro jeito de
andar, falar, pensar e com um
temperamento completamente
diferente.
Por essa razão, acho que daqui
a alguns anos, passado o impacto
inicial e resolvidos os problemas
técnicos que se apresentam atualmente, a pressão para que se
abram exceções às leis que proibirem a clonagem humana serão irresistíveis. Vamos considerar apenas três situações hipotéticas:
1) A mãe de um filho único com
cinco anos de idade que sofre de
uma leucemia que só poderá ser
curada com um transplante de
medula óssea, programado para
o ano seguinte. Quem convencerá
essa mulher a aceitar que é proibido retirar o núcleo de uma célula da pele do filho doente, introduzi-lo num óvulo dela e conceber o irmão gêmeo que a natureza negou ao filho enfermo? Se a
clonagem estiver proibida e a
mãe, desesperada, decidir realizá-la clandestinamente num outro país, deverá ir para a cadeia?
2) Suponhamos, um casal de
pessoas que se compreendem, respeitam-se e vivem felizes há muito anos, mas não conseguem ter
filhos porque ele não produz espermatozóides. Se ela decidir clonar um filho desse homem, deve
ser considerado crime usar 100%
dos genes do pai, em vez dos habituais 50% contidos no espermatozóide?
3) Terá a sociedade o direito de
negar a uma mulher que não
queira casar-se, mas deseje uma
filha, o direito de retirar o núcleo
de uma célula sua, introduzi-lo
num óvulo que é dela e gerar em
seu útero uma menina da qual
cuidará com amor e carinho?
Dizer que tais filhos não poderiam ser concebidos porque estariam apenas a atender aos desejos
dos pais não é justificativa moral
para a condenação dessas clonagens hipotéticas: milhões de
crianças são concebidas diariamente em obediência aos mais estranhos caprichos paternos e maternos.
Por outro lado, considerar imoral uma cópia idêntica de outra
pessoa é repreender a natureza
que vez por outra nos surpreende
com gêmeos univitelinos. Além
disso, imaginar que seres clonados seriam meras cópias da pessoa que lhes doou os genes é ignorância: a personalidade é consequência do impacto que o meio
exerce na circuitaria de neurônios herdados de nossos pais. Os
estímulos ambientais moldam a
arquitetura dos circuitos nervosos
cerebrais de forma absolutamente imprevisível, criando características individuais que fazem de
cada ser humano um experimento único da natureza.
Se taparmos o olho direito de
um recém-nascido por 30 dias, ele
ficará irreversivelmente cego desse olho. Os neurônios do olho cego
estarão íntegros na retina, mas
definitivamente incapacitados
para conduzir estímulos luminosos por não terem sido ativados
no momento crítico. O mesmo
acontece com os sons, a fala, a alfabetização ou a habilidade com
os computadores.
Nosso cérebro é constituído por
100 bilhões de neurônios ligados
em rede (a fiação mede 100 mil
quilômetros de extensão). Como
a propriedade mais importante
desse sistema é a plasticidade, especular quem tem papel preponderante, o meio ou a genética, no
desenvolvimento da personalidade é tão insensato quanto ouvir
uma música ao longe e discutir se
ela resulta do violino ou do violinista.
Finalmente, quanto à preocupação máxima diante da clonagem -o pavor dos batalhões de
seres gerados para a submissão irrestrita aos dominadores, como
nos filmes- não há por que entrar em pânico: eles jamais existirão. O número de genes envolvidos na mais comezinha característica comportamental é tão
grande, e suas interações na rede
de neurônios, tão complexas, que
nos referimos a eles, em linguagem técnica, como "constelações
de genes".
Mesmo que o impossível acontecesse e daqui a mil anos estivessem decifradas todas as sutilezas
das interações químicas entre os
genes que ativam ou inibem outros no interior dessas constelações e que as bases moleculares
das relações entre elas fossem descritas com rigor matemático, ainda assim faltaria explicar o que é
a consciência, o mistério maior
da condição humana.
O que fazer, então, liberar a clonagem, como fizemos com os bebês de proveta? Neste momento,
jamais! A clonagem ainda é uma
tecnologia mal conhecida, que
não pode ser aplicada para conceber seres humanos por razões de
segurança. Animais clonados
apresentam alto risco de desenvolver doenças pulmonares ou
anomalias congênitas e de nascer
muito acima do peso, criando
graves complicações de parto.
Embora devamos permitir a
clonagem de células pluripotentes
para explorar o potencial de aplicação médica dessa tecnologia, as
leis atuais precisam ser muito claras na proibição da clonagem de
seres humanos. Mesmo sabendo
que no futuro a sociedade poderá
decidir o contrário.
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