São Paulo, sábado, 15 de dezembro de 2001

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DRAUZIO VARELLA

De volta à clonagem

Gostaria de ter um irmão gêmeo idêntico. Se precisasse de um rim pediria a ele, se tivesse um linfoma podia contar com a medula óssea dele e nos aniversários chatos quem saberia qual dos dois estava lá? Além disso, deve ser engraçado um corpo idêntico ao seu, com outro jeito de andar, falar, pensar e com um temperamento completamente diferente.
Por essa razão, acho que daqui a alguns anos, passado o impacto inicial e resolvidos os problemas técnicos que se apresentam atualmente, a pressão para que se abram exceções às leis que proibirem a clonagem humana serão irresistíveis. Vamos considerar apenas três situações hipotéticas:
1) A mãe de um filho único com cinco anos de idade que sofre de uma leucemia que só poderá ser curada com um transplante de medula óssea, programado para o ano seguinte. Quem convencerá essa mulher a aceitar que é proibido retirar o núcleo de uma célula da pele do filho doente, introduzi-lo num óvulo dela e conceber o irmão gêmeo que a natureza negou ao filho enfermo? Se a clonagem estiver proibida e a mãe, desesperada, decidir realizá-la clandestinamente num outro país, deverá ir para a cadeia?
2) Suponhamos, um casal de pessoas que se compreendem, respeitam-se e vivem felizes há muito anos, mas não conseguem ter filhos porque ele não produz espermatozóides. Se ela decidir clonar um filho desse homem, deve ser considerado crime usar 100% dos genes do pai, em vez dos habituais 50% contidos no espermatozóide?
3) Terá a sociedade o direito de negar a uma mulher que não queira casar-se, mas deseje uma filha, o direito de retirar o núcleo de uma célula sua, introduzi-lo num óvulo que é dela e gerar em seu útero uma menina da qual cuidará com amor e carinho?
Dizer que tais filhos não poderiam ser concebidos porque estariam apenas a atender aos desejos dos pais não é justificativa moral para a condenação dessas clonagens hipotéticas: milhões de crianças são concebidas diariamente em obediência aos mais estranhos caprichos paternos e maternos.
Por outro lado, considerar imoral uma cópia idêntica de outra pessoa é repreender a natureza que vez por outra nos surpreende com gêmeos univitelinos. Além disso, imaginar que seres clonados seriam meras cópias da pessoa que lhes doou os genes é ignorância: a personalidade é consequência do impacto que o meio exerce na circuitaria de neurônios herdados de nossos pais. Os estímulos ambientais moldam a arquitetura dos circuitos nervosos cerebrais de forma absolutamente imprevisível, criando características individuais que fazem de cada ser humano um experimento único da natureza.
Se taparmos o olho direito de um recém-nascido por 30 dias, ele ficará irreversivelmente cego desse olho. Os neurônios do olho cego estarão íntegros na retina, mas definitivamente incapacitados para conduzir estímulos luminosos por não terem sido ativados no momento crítico. O mesmo acontece com os sons, a fala, a alfabetização ou a habilidade com os computadores.
Nosso cérebro é constituído por 100 bilhões de neurônios ligados em rede (a fiação mede 100 mil quilômetros de extensão). Como a propriedade mais importante desse sistema é a plasticidade, especular quem tem papel preponderante, o meio ou a genética, no desenvolvimento da personalidade é tão insensato quanto ouvir uma música ao longe e discutir se ela resulta do violino ou do violinista.
Finalmente, quanto à preocupação máxima diante da clonagem -o pavor dos batalhões de seres gerados para a submissão irrestrita aos dominadores, como nos filmes- não há por que entrar em pânico: eles jamais existirão. O número de genes envolvidos na mais comezinha característica comportamental é tão grande, e suas interações na rede de neurônios, tão complexas, que nos referimos a eles, em linguagem técnica, como "constelações de genes".
Mesmo que o impossível acontecesse e daqui a mil anos estivessem decifradas todas as sutilezas das interações químicas entre os genes que ativam ou inibem outros no interior dessas constelações e que as bases moleculares das relações entre elas fossem descritas com rigor matemático, ainda assim faltaria explicar o que é a consciência, o mistério maior da condição humana.
O que fazer, então, liberar a clonagem, como fizemos com os bebês de proveta? Neste momento, jamais! A clonagem ainda é uma tecnologia mal conhecida, que não pode ser aplicada para conceber seres humanos por razões de segurança. Animais clonados apresentam alto risco de desenvolver doenças pulmonares ou anomalias congênitas e de nascer muito acima do peso, criando graves complicações de parto.
Embora devamos permitir a clonagem de células pluripotentes para explorar o potencial de aplicação médica dessa tecnologia, as leis atuais precisam ser muito claras na proibição da clonagem de seres humanos. Mesmo sabendo que no futuro a sociedade poderá decidir o contrário.



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