|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Filmes para toda a família
Estão em cartaz dois filmes
ótimos para as férias, "Harry
Potter e o Cálice de Fogo", de Mike Newell, e "As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa", de Andrew Adamson.
O filme de Adamson leva ao cinema uma das sete "Crônicas de
Nárnia", escritas por C. S. Lewis
nos anos 50 do século passado. O
filme de Newell corresponde ao
quarto volume das aventuras de
Harry Potter, escritas por J.K. Rowling. Os dois filmes são encantadores, como os escritos que os inspiram.
O "Cálice de Fogo" (talvez o melhor "Harry Potter" até agora) foi
elogiado, em particular, por "humanizar" Harry e seus colegas. Já
com 14 anos, o jovem herói, por
mais que seja mago, conhece as
dores da adolescência. Por exemplo, envergonhado na hora de
convidar a menina de quem ele
gosta, acaba levando para o baile
uma substituta. No baile, ele fica
jogado numa cadeira como todos
ficamos aos 14 anos: comentando
sardonicamente a dança dos outros, com medo de termos ares de
criança se nos aventurássemos na
pista.
Por causa disso, alguns críticos
afirmaram que "O Cálice de Fogo", magia à parte, é um filme sobre a adolescência. Concordo,
mas não só pelas atrapalhações
de Harry, que despertam em nós
sorrisos condescendentes.
No filme, quatro jovens são encorajados a competir em provas
desesperadoramente perigosas.
Trata-se de um jogo, mas, para os
concorrentes, a questão é de vida
ou morte.
Ora, a maior aspiração de qualquer adolescente é que sua existência (não só seu futuro) seja levada a sério e que as aventuras de
seu dia-a-dia não sejam consideradas por nós como percalços engraçados de um tempo protegido
de formação. Os adolescentes,
aliás, não param de inventar atos
e riscos extremos para sacudir
nossa condescendência e forçar
nosso respeito. Melhor ainda se,
como no filme, os ditos atos e riscos forem impostos por nós: os jovens saberiam, enfim, quais provas são exigidas para que eles se
tornem adultos aos nossos olhos.
Pois é, se nossos adolescentes tivessem mesmo que encarar dragões, eles talvez não precisassem
de drogas.
Mas vamos a "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa". O filme
suscitou uma salva de críticas
ideológicas, porque a história seria uma alegoria do triunfo do
cristianismo.
C. S. Lewis era cristão (convertido tardiamente pelo amigo Tolkien, o autor de "O Senhor dos
Anéis"). De fato, na história do
leão Aslam, há elementos que
evocam a história de Cristo. Mas
em termos: para mim (e para vários outros), a "loucura" da mensagem cristã fala do sacrifício de
um humilde, de um cordeiro que
resgata a todos. Nada a ver com
um leão que reúne um exército
para enfrentar o mal.
Alguns comentadores não se
preocuparam com essa discrepância e não se perguntaram de
onde ela vem. Preferiram apresentar Lewis como um conselheiro espiritual de George W. Bush:
sua visão de um cristianismo
guerreiro coincidiria com o espírito dos falcões que promoveram a
invasão do Iraque como mais
uma cruzada.
Por gratidão pelo prazer que a
leitura das "Crônicas" me proporcionou na infância, devo defender Lewis desse disparate.
Lewis escreveu uma deliciosa
autobiografia, "Surprised by Joy:
the Shape of My Early Life" (surpreendido pela alegria: a forma
do começo de minha vida), na
qual ele narra o caminho de sua
conversão.
Sua paixão, desde a infância,
foi o mundo mágico da aventura.
Da vasta e excelente produção de
Lewis crítico e historiador da literatura da Idade Média e da Renascença, conheço dois livros, talvez os principais: "The Allegory of
Love" (a alegoria do amor), de
1936, e "The Discarded Image" (a
imagem descartada), de 1964.
Ambos celebram e festejam a possibilidade (que explode na literatura da Renascença italiana com
Ariosto, Boiardo e Tasso) de narrar o maravilhoso, além da vida
real e além do mistério da fé.
É por causa dessa paixão pelo
maravilhoso que Lewis se converteu: adotou o cristianismo porque
viu nas verdades da fé mais uma
história fantástica, que tinha a
vantagem de poder ser verdadeira.
É injusto dizer que Lewis escreveu as "Crônicas de Nárnia" como uma alegoria do cristianismo.
Ao contrário, ele se tornou cristão
porque a história de Cristo lhe parecia tão fantástica quanto a história dos Cavaleiros da Mesa Redonda (ou a do leão Aslam, salvador de Nárnia).
Na hora de criticar, a ideologia
é má conselheira: os mesmos críticos que quiseram enxergar em
Lewis um falcão com espírito de
cruzado, esqueceram-se de notar
que algo, nas "Crônicas", pode
mesmo incomodar nosso espírito
libertário. Esse "algo" não é a alegoria do cristianismo, mas a felicidade um pouco babaca com a
qual os animais de Nárnia, uma
vez libertados da feiticeira, apressam-se a aclamar novos reis, sem
pensar nem um instante que eles
poderiam se governar sozinhos. O
cenário dos mundos encantados é
quase sempre a sociedade tradicional, com seu respeito incontestável por hierarquia e autoridade.
Seja como for, deleitem-se com
os filmes, pois ambos expressam
um anseio que todos conhecemos
(não só os adolescentes): o anseio
de encontrar provas maravilhosas que nos testem.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Moda: "Celebração" percorre os dez anos da SPFW Próximo Texto: Panorâmica - Memória 1: Morre o fotógrafo Loomis Dean, aos 88 Índice
|