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ANTONIO CICERO
Os limites da diversidade cultural
O direito à diversidade cultural tem que ser o direito à experimentação em arte, filosofia e ciência
A DECLARAÇÃO Universal sobre
a Diversidade Cultural da
UNESCO define a cultura como "o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam
uma sociedade ou um grupo social e
que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras
de conviver, os sistemas de valores,
as tradições e as crenças".
Quanto a artes e letras, é claro que
tudo o que a humanidade já fez
constitui um patrimônio a ser preservado e disponibilizado à fruição
da presente e das futuras gerações.
Quanto a modos de vida, maneiras
de conviver, sistemas de valores,
crenças e tradições, porém, a situação é outra. Alguns são admiráveis e
devem ser preservados; outros são
abomináveis -etnocêntricos, racistas, sexistas, intolerantes- e devem
ser combatidos.
Apropriadamente, o artigo 4 da
Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, intitulado "Os Direitos Humanos, Garantias da Diversidade Cultural" afirma, com razão,
que "a defesa da diversidade cultural
[...] implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que
pertencem a minorias e os dos povos
autóctones. Ninguém pode invocar
a diversidade cultural para violar os
direitos humanos garantidos pelo
direito internacional, nem para limitar seu alcance".
Infelizmente, porém, desde antropólogos até obscurantistas religiosos têm, em nossos dias, invocado a ideologia do relativismo cultural para justificar todo tipo de violação dos direitos humanos. Segundo
eles, tais direitos pertencem à cultura ocidental, onde surgiram, de modo que tentar exportá-los para culturas que não os reconhecem violaria o direito destas à diversidade.
Assim, foi com base no relativismo cultural que neste ano, na Alemanha, uma juíza -citando o Alcorão, que reserva ao homem a prerrogativa de castigar a esposa em certos
casos- recusou-se a conceder o direito à antecipação do divórcio a
uma mulher que era regularmente
surrada pelo marido muçulmano.
Ou seja, em nome do direito à diversidade cultural, desrespeitaram-se
os direitos humanos dessa mulher.
Ora, os direitos humanos não são
um produto da cultura ocidental. Na
Europa, o reconhecimento deles foi
uma vitória da razão -que só o mais
tacanho etnocentrista classificaria
de "ocidental"- exatamente sobre
as tradições culturais bárbaras do
Ocidente medieval.
De todo modo, a menos que seja
tomada como uma aplicação particular dos direitos humanos, a Declaração Universal sobre Diversidade
Cultural não pode ser levada a sério.
Por quê? Porque cada unidade cultural ampla contém ou é capaz de
conter minorias, isto é, unidades
culturais menores. A proteção da diversidade cultural falhará, a menos
que proteja também o direito à diversidade de cada uma dessas unidades menores.
Pois bem, a menor unidade concebível é o indivíduo. Por exemplo, um
único judeu -ou ateu, ou budista-
que viva entre evangélicos constitui
uma unidade cultural minoritária.
Embora, portanto, a declaração em
questão tenha em vista proteger a
diversidade cultural de unidades
culturais maiores do que a de um indivíduo, essa proteção será em última análise deficiente, a menos que
se estenda ao indivíduo; e este é o sujeito dos direitos humanos. Portanto, para ser consistente, o direito à
diversidade cultural tem que ser
pensado como um direito humano:
o direito de cada indivíduo humano
à diversidade.
Esse direito me traz de volta à definição de cultura da UNESCO. Eu
disse que tudo o que já se fez em matéria de artes e letras constitui um
patrimônio a ser preservado e disponibilizado à apreciação da presente e das futuras gerações. No entanto, é preciso não esquecer que tudo o
que já se fez, conquanto importante,
é apenas um conjunto de possibilidades que se realizaram. Há, porém,
infinitas outras possibilidades a se
realizarem, algumas das quais só se
manifestam historicamente, a partir
do desenvolvimento tecnológico. O
direito à diversidade cultural tem
que ser, portanto, o direito à experimentação e ousadia em arte, filosofia, ciência, tecnologia etc.
E aqui penso que é preciso ir além
e afirmar que o direito à diversidade
cultural, estendido até o indivíduo e
tendo como fundamento último e
intransponível os direitos humanos,
deve garantir a liberdade de experimentação também no que diz respeito a novos -para usar as palavras
da mesma definição- modos de vida, maneiras de conviver, sistemas
de valores e maneiras de lidar com a
tradição e as crenças.
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