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ARTIGO
Bienal age de modo cínico e intolerante ao lavar as mãos
Acusar a grafiteira Carolina da Mota, presa há 52 dias,
de "danificar patrimônio tombado" é estratégia hedionda
PAULO HERKENHOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA
Minha opinião ou a de
qualquer outra pessoa sobre o grafite
não tem a menor importância
no caso da Carolina Pivetta da
Mota na Bienal de São Paulo.
Não se trata de condenar ou
aplaudir a ação de grafitagem.
Eu vi, em 1972, os seguranças
do MAM carioca ajudarem Antonio Manuel a fugir da polícia
que o perseguia porque havia se
apresentado nu no Salão Nacional de Arte Moderna. O
MAM do Rio não mandou
prender Raimundo Colares
quando quebrou vidros do prédio em manifestação durante a
ditadura militar.
A Bienal quer que o Brasil
sinta saudades da ditadura? A
mesma Bienal que entrega a
grafiteira à polícia foi a que
proscreveu Cildo Meireles em
2006 por ter protestado contra
a reeleição de Edemar Cid Ferreira para seu conselho. O paradoxo é que Edemar não providenciou a prisão da garota que
beijou com batom uma tela de
Andy Warhol na Bienal de
1996, fato muito mais grave do
que grafitar paredes nuas.
A Bienal, seu presidente,
conselheiros e curadores que
continuarem a se omitir precisam aprender algo com Edemar: na Bienal, a repressão não
é um fim em si. Confesso que,
quando soube da grafitagem,
pensei que fosse um gesto autorizado numa Bienal que ia criar
uma praça de convivência e estimulava a participação da cultura pop jovem. Era estratégia
de marketing ou efetiva proposta de política cultural?
No entanto, tudo é obscurantista na posição da Bienal desde
o dia da grafitagem. Posso até
entender as reações de primeira hora mais agressivas por
agentes culturais e políticos da
Bienal, mas temos de admitir
ser uma estratégia hedionda
acusar a grafiteira de "danificar" o patrimônio tombado, já
que as feiras, as festas de casamento e a própria Bienal furam
e escrevem nas paredes, pintam e bordam com o prédio
sem autorização do Iphan.
Se a grafiteira fosse um nome
do mercado de arte não teria sido presa ou já estaria solta. O
ato de Carolina Pivetta da Mota
é rigorosamente igual a tudo o
que ocorre no prédio da Bienal.
Depois é só repintar, como
aconteceu.
Tudo se refaz porque o prédio da Bienal está à disposição
da expressão. Sua estrutura
original de feira industrial tinha que ser necessariamente
versátil para atender a todo tipo de tranco físico. Por isso o
acabamento sem adornos e luxo do Pavilhão do Ibirapuera. É
só cimento, tijolo e cal.
Debate na pasmaceira
Carolina também não interveio na obra de ninguém. Ela
não é uma Tony Shafrazi, que
grafitou a "Guernica" de Picasso. Se tivesse praticado um ato
anti-social realmente grave,
Carolina já poderia ter sido
condenada a alguma prática comunitária na própria Bienal.
Neste caso, não se estaria
"domesticando" uma consciência crítica, mas dando-lhe a
oportunidade de entender melhor o processo de uma Bienal.
O que Carolina está contribuindo socialmente agora é a
introduzir um debate na pasmaceira institucional.
Se tivesse causado um dano
real à superfície das paredes,
teria sido ínfimo. Dirigi um
museu do Iphan onde uma ex-diretora causou danos em esculturas ao instalá-las ao ar livre, onde tomavam chuva ácida. O Iphan e o Ministério Público não pediram sua prisão
quando se verificaram danos
irreparáveis à pátina na escultura "A Faceira de Bernardelli".
No caso do grafite na Bienal,
não ficaram seqüelas. Fui curador da 24ª Bienal de São Paulo,
e minha monografia final no
mestrado em direito pela Universidade de Nova York foi na
área de direito constitucional.
Nessa dupla condição, afirmo
que o que vejo aqui é uma posição odienta da Bienal transferindo a responsabilidade por
essa situação kafkiana para os
órgãos do Estado como responsáveis por este processo.
Carolina não danificou nenhuma obra de arte. Por acaso,
Oscar Niemeyer veio a público
protestar contra a grafitagem
como um "ataque" danoso ao
pavilhão do qual é autor, como
sempre fez quando degradam
um projeto de sua autoria?
A Fundação Bienal primeiro
agiu de modo intolerante e agora de modo cínico ao lavar as
mãos. Parece que estar em "vivo contato", proposta desta
Bienal, está sendo entendido
como exercício de ira ou crueldade que, afinal, estão entre as
pulsões de morte da espécie
humana. Ou é só vingança? Afinal, alguém tem que pagar...
Mesmo que seja uma mulher,
baixinha, gordinha que não
conseguiu escapar da ineficiente vigilância da instituição como os outros 30 galalaus.
Sua prisão serviu para salvar
a honra dos vigilantes e o contrato da empresa com a Bienal... Parabéns a Carolina por
não ter pensado na delação
premiada para se safar da encrenca, mesmo depois de 52
dias sem um habeas corpus.
Carolina Pivetta da Mota
passou o dia de comemoração
dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
numa cadeia em São Paulo. Isso não denigre a Bienal, nem
São Paulo, nem o Brasil. Isso
denigre a humanidade.
Se o vazio fosse de fato o espaço aberto para discutir a instituição, essa extraordinária
grafitagem teria sido incorporada ao projeto ético e político
da 28ª Bienal. A grafitagem já é
um dos fatores mais marcantes
desta edição. Com mais repressão, deixará de ser um problema de excessivo rigor penitenciário para se tornar uma questão para estudos éticos curatoriais e debates estéticos.
Se a Fundação Bienal de São
Paulo não se cuidar, a conclusão a que se poderá chegar é a
de que o principal problema da
Bienal é a 28ª Bienal e a estrutura política que a sustentou.
Peço desculpas a Carolina
por não ter protestado, em minha recente palestra na Bienal,
em sua defesa e contra esse estado brutal de condução da vida institucional. Eu pensava
que já estivesse solta.
Quem salva o Brasil e a Bienal não é cadeia, é Mário Pedrosa ao dizer que a arte é o
exercício experimental da liberdade. E dirigir a Fundação
Bienal de São Paulo ou fazer
curadoria não pode perder isto
de vista.
PAULO HERKENHOFF é curador e crítico de arte. Dirigiu o Museu Nacional de Belas Artes, no
Rio, e foi curador do MoMA em Nova York e da
24ª Bienal de São Paulo, em 1998
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