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FERREIRA GULLAR
A turma da casa do Mário
Éramos um grupo de jovens
artistas que, no começo da
década de 1950, freqüentávamos
seu apartamento da rua Visconde
de Pirajá, em Ipanema. Ivan Serpa, Almir Mavignier, Abraham
Palatnik, Amilcar de Castro e
ainda Lucy Teixeira e eu. Alguns
mais, alguns menos ali apareciam para estar com ele e conversar sobre arte. Às vezes, encontrávamos lá gente mais velha, ligada
à política, como Lívio Xavier e
Fúlvio Abramo, antigos companheiros de uma época em que a
principal preocupação de Mário
era fazer a revolução socialista no
Brasil.
Mas, na maioria das vezes, falávamos de arte, das experiências
de vanguarda e, principalmente,
da arte concreta que, na opinião
dele, marcava o ápice da experiência artística moderna por ser
uma linguagem livre de todo regionalismo e nacionalismo, já
que as formas geométricas, como
os arquétipos platônicos, situavam-se acima do conjuntural.
Palatnik acabara de inventar o
aparelho cinecromático (máquina de fazer pintura), que levou
Almir Mavignier a chorar no ombro de Lasar Segall: "A pintura
acabou, Segall!". É verdade que
ele estava de porre.
Almir, que nascera num subúrbio carioca, decidiu então mudar-se para a Alemanha, fascinado pela lição de Max Bill e do
Grupo de Ulm, e nunca mais voltou. Um dia, Lucy Teixeira foi visitá-lo e surpreendeu-se com o
apartamento totalmente pintado
de branco, armários, cadeiras,
mesa, tudo; de cor diferente, só
havia ali uma maçã, estrategicamente posta na ponta da mesa.
Depois de horas de papo intenso,
chegou a fome. Almir se levantou,
tocou com o dedo num ponto
qualquer da parede e abriu-se a
porta de um armário donde saiu
um jorro de lixo: latas abertas de
sardinhas e de conservas, cascas
de bananas, restos de pão, o diabo
a quatro. Ele, com muito esforço,
empurrou o lixo para dentro do
armário, fechou-o e de novo tudo
voltou à pureza concretista. Lucy,
maliciosamente, observou:
-Então é aí que você esconde o
brasileiro!
Essa frase era reveladora de
uma contradição inevitável nos
casos de antropofagia cultural.
Também Max Bill, que construía
suas obras a partir de cálculos
matemáticos, ao perguntar a
Ivan Serpa como concebia seus
quadros, ouviu uma explicação
espantosa, já que Ivan de matemática não manjava nada. E tal
não foi a surpresa da jovem pintora Lygia Clark, ao chegar num
domingo à tarde à casa de Ivan e
encontrá-lo ouvindo "A Hora do
Pato", popular programa de auditório da Rádio Nacional.
Não obstante, a própria Lygia,
que mais tarde se tornaria um
mito da vanguarda brasileira dos
anos 60, estava longe de ser vanguardista 24 horas por dia. Longe
disso, suas experiências artísticas
vinham-lhe mais da intuição do
que da erudição e até mesmo das
dificuldades de se relacionar com
sua própria mente: "Ontem
-confidenciou-me ela- estava
sentada aqui na sala quando, de
repente, todos os móveis e objetos
moveram-se em minha direção,
querendo me invadir". Estávamos nisso, quando chegou um de
seus filhos e perguntou-lhe: "Mamãe, o que é "psicanage"?". E ela:
"É a mesma coisa que "sacanage'!".
Mas estamos falando da disparidade cultural entre aqueles jovens artistas brasileiros e a arte
concreta européia, a que haviam
aderido. Amilcar, embora tivesse
seu modo próprio de conceber a
escultura, desejava que suas
obras ganhassem o mesmo acabamento e precisão das de Bill e,
por isso, saiu inutilmente em busca de uma oficina que servisse a
seu propósito. Depois de muito,
convenceu-se de que aquele acabamento só era possível obter
com a tecnologia européia. Esta
foi a razão -a meu juízo- que o
levou a optar por uma escultura
feita de placas de ferro, cortadas a
fogo, sem ionização, sem pintura,
expostas à ferrugem. Assim se fazem as obras de arte, como tudo o
mais, dentro das condições que a
realidade possibilita. O que não
lhes tira o valor. É que a obra de
arte, antes de ser feita, não estava
latente em algum ponto oculto do
real nem possui uma forma a que
fatalmente o artista chegaria
guiado por mão divina: a obra é
fruto da invenção do artista, de
uma interação entre objetividade
e acaso, acerto e erro. Como disse
certa vez mestre Picasso: "Se quero pôr no quadro um azul e não o
encontro na caixa de tintas, ponho um verde mesmo".
Mas nem só de arte e política se
falava na casa de Mário Pedrosa.
Mary, sua mulher, era irmã da
cantora Elsie Houston, que se casara com o poeta surrealista Benjamin Péret. Do casamento nasceu um filho a que o poeta decidiu
pôr o nome de Lúcifer. A sorte do
garoto foi que o cartório não aceitou registrá-lo com esse nome. Péret tornara-se conhecido quando
a revista do movimento surrealista publicou uma foto em que ele
aparecia gesticulando contra um
padre que fugia apavorado e cuja
legenda dizia: "O poeta Benjamin
Péret quando insultava um padre
na rue de la Pêche".
Uma anedota que ouvi do Mário falava de um amigo seu cujo
irmão era pirado. O amigo adoecera, e os exames médicos indicaram que ele estava tuberculoso.
Naquela noite, à mesa do jantar,
a família comentava o fato, e o irmão pirado tomou a palavra:
-Com tuberculose não se brinca -disse ele- e veja por quê: tu
é tu mesmo; ber é urso em inglês;
cu, nem precisa explicar; lose é
perdido. Conclusão: tu perdido no
cu do urso... A situação é grave!
Ainda hoje essa anedota me faz
rir. Mas rio comovido com a lembrança e a saudade daqueles
amigos e daquele tempo.
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