São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

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FERREIRA GULLAR

A turma da casa do Mário

Éramos um grupo de jovens artistas que, no começo da década de 1950, freqüentávamos seu apartamento da rua Visconde de Pirajá, em Ipanema. Ivan Serpa, Almir Mavignier, Abraham Palatnik, Amilcar de Castro e ainda Lucy Teixeira e eu. Alguns mais, alguns menos ali apareciam para estar com ele e conversar sobre arte. Às vezes, encontrávamos lá gente mais velha, ligada à política, como Lívio Xavier e Fúlvio Abramo, antigos companheiros de uma época em que a principal preocupação de Mário era fazer a revolução socialista no Brasil.
Mas, na maioria das vezes, falávamos de arte, das experiências de vanguarda e, principalmente, da arte concreta que, na opinião dele, marcava o ápice da experiência artística moderna por ser uma linguagem livre de todo regionalismo e nacionalismo, já que as formas geométricas, como os arquétipos platônicos, situavam-se acima do conjuntural. Palatnik acabara de inventar o aparelho cinecromático (máquina de fazer pintura), que levou Almir Mavignier a chorar no ombro de Lasar Segall: "A pintura acabou, Segall!". É verdade que ele estava de porre.
Almir, que nascera num subúrbio carioca, decidiu então mudar-se para a Alemanha, fascinado pela lição de Max Bill e do Grupo de Ulm, e nunca mais voltou. Um dia, Lucy Teixeira foi visitá-lo e surpreendeu-se com o apartamento totalmente pintado de branco, armários, cadeiras, mesa, tudo; de cor diferente, só havia ali uma maçã, estrategicamente posta na ponta da mesa. Depois de horas de papo intenso, chegou a fome. Almir se levantou, tocou com o dedo num ponto qualquer da parede e abriu-se a porta de um armário donde saiu um jorro de lixo: latas abertas de sardinhas e de conservas, cascas de bananas, restos de pão, o diabo a quatro. Ele, com muito esforço, empurrou o lixo para dentro do armário, fechou-o e de novo tudo voltou à pureza concretista. Lucy, maliciosamente, observou:
-Então é aí que você esconde o brasileiro!
Essa frase era reveladora de uma contradição inevitável nos casos de antropofagia cultural. Também Max Bill, que construía suas obras a partir de cálculos matemáticos, ao perguntar a Ivan Serpa como concebia seus quadros, ouviu uma explicação espantosa, já que Ivan de matemática não manjava nada. E tal não foi a surpresa da jovem pintora Lygia Clark, ao chegar num domingo à tarde à casa de Ivan e encontrá-lo ouvindo "A Hora do Pato", popular programa de auditório da Rádio Nacional.
Não obstante, a própria Lygia, que mais tarde se tornaria um mito da vanguarda brasileira dos anos 60, estava longe de ser vanguardista 24 horas por dia. Longe disso, suas experiências artísticas vinham-lhe mais da intuição do que da erudição e até mesmo das dificuldades de se relacionar com sua própria mente: "Ontem -confidenciou-me ela- estava sentada aqui na sala quando, de repente, todos os móveis e objetos moveram-se em minha direção, querendo me invadir". Estávamos nisso, quando chegou um de seus filhos e perguntou-lhe: "Mamãe, o que é "psicanage"?". E ela: "É a mesma coisa que "sacanage'!".
Mas estamos falando da disparidade cultural entre aqueles jovens artistas brasileiros e a arte concreta européia, a que haviam aderido. Amilcar, embora tivesse seu modo próprio de conceber a escultura, desejava que suas obras ganhassem o mesmo acabamento e precisão das de Bill e, por isso, saiu inutilmente em busca de uma oficina que servisse a seu propósito. Depois de muito, convenceu-se de que aquele acabamento só era possível obter com a tecnologia européia. Esta foi a razão -a meu juízo- que o levou a optar por uma escultura feita de placas de ferro, cortadas a fogo, sem ionização, sem pintura, expostas à ferrugem. Assim se fazem as obras de arte, como tudo o mais, dentro das condições que a realidade possibilita. O que não lhes tira o valor. É que a obra de arte, antes de ser feita, não estava latente em algum ponto oculto do real nem possui uma forma a que fatalmente o artista chegaria guiado por mão divina: a obra é fruto da invenção do artista, de uma interação entre objetividade e acaso, acerto e erro. Como disse certa vez mestre Picasso: "Se quero pôr no quadro um azul e não o encontro na caixa de tintas, ponho um verde mesmo".
Mas nem só de arte e política se falava na casa de Mário Pedrosa. Mary, sua mulher, era irmã da cantora Elsie Houston, que se casara com o poeta surrealista Benjamin Péret. Do casamento nasceu um filho a que o poeta decidiu pôr o nome de Lúcifer. A sorte do garoto foi que o cartório não aceitou registrá-lo com esse nome. Péret tornara-se conhecido quando a revista do movimento surrealista publicou uma foto em que ele aparecia gesticulando contra um padre que fugia apavorado e cuja legenda dizia: "O poeta Benjamin Péret quando insultava um padre na rue de la Pêche".
Uma anedota que ouvi do Mário falava de um amigo seu cujo irmão era pirado. O amigo adoecera, e os exames médicos indicaram que ele estava tuberculoso. Naquela noite, à mesa do jantar, a família comentava o fato, e o irmão pirado tomou a palavra:
-Com tuberculose não se brinca -disse ele- e veja por quê: tu é tu mesmo; ber é urso em inglês; cu, nem precisa explicar; lose é perdido. Conclusão: tu perdido no cu do urso... A situação é grave!
Ainda hoje essa anedota me faz rir. Mas rio comovido com a lembrança e a saudade daqueles amigos e daquele tempo.


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