São Paulo, segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

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MÚSICA

Coleção recupera a melhor fase do mais célebre compositor e arranjador argentino, com 13 discos remasterizados

Obra de Piazzolla é reeditada na Argentina

FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES

O crítico musical Diego Fischerman chegou à direção da Sony-BMG na Argentina com um projeto: reeditar toda a obra de Astor Piazzolla (1921-1992) em poder da gravadora -a que abarca a melhor fase do mais célebre compositor e arranjador argentino, responsável por uma revolução no tango.
Tratava-se de recuperar 13 volumes gravados originalmente para os selos RCA Victor e CBS Columbia num período de 1961 a 1982, passando por toda a década de 60, considerada a produção mais inventiva do músico.
O conjunto começa com o raro primeiro registro em disco do clássico "Adiós Nonino", em 1961, e termina com um show gravado por Piazzolla num teatro de Buenos Aires, em plena Guerra das Malvinas, em 1982. No espetáculo, Roberto Goyoneche, então companheiro de palco do músico, põe Margaret Thatcher (primeira-ministra britânica de 1979 a 1990) na letra do tango "Cambalache", aquele que chama o século 20 de "problemático y febril", em que "cualquiera es un señor, cualquiera es un ladrón".

Refém de coletâneas
Soa surpreendente, mas até dois meses atrás, quando a idéia de Fischerman chegou às lojas, era impossível montar essa trajetória de Piazzolla a partir do que estava disponível no mercado. Salvo raros álbus em catálogo, a obra era refém de coletâneas "O melhor de...", toda sorte de erros de data e discos distintos com igual título (de preferência "Adiós Nonino").
Agora, a chamada "edição crítica" anota nos volumes, remasterizados diretamente das fitas originais, as canções, data e formação que acompanhava Piazzolla (ora quinteto, ora octeto ou noneto). Como bônus, faixas gravadas como singles ou EPs.
A coleção permite ver o que Fischerman chama de "o projeto de Piazzolla de ser o Gershwin criollo". Nos discos dos anos 60, influenciado pela infância em Nova York (quando Gershwin lançou a ópera folk "Porgy and Bess") e pela passagem pela França, Piazzolla rompe com sua carreira de tangueiro tradicional, experimenta formações e busca músicos fora do tango, capazes de improvisar.
"Na visão de modernidade de Piazzolla, não podia haver música que não falasse da cidade." E, assim como Gershwin, conseguiu captar seus sons. "Piazzolla representou Buenos Aires, depois do tango, morto à altura, e antes do rock. Não havia filme que não usasse uma composição dele", explica Fischerman.
Mas, diferentemente do compositor norte-americano -a falha no projeto criollo, diz o crítico-, ele não conseguiu uma produção verdadeiramente na música clássica. "Gershwin saiu da tradição da música escrita para encontrar o popular. Piazzolla fez o inverso. Mas diferentemente do americano, a obra de Piazzolla é Piazzolla tocando. A execução é essencial. A obra escrita não tem mesmo peso", afirma.

Mal-entendidos
A organização da coleção é uma espécie de subproduto do livro que Fischerman escreve junto com o músico e investigador Abel Gilbert: "O Mal Entendido - Astor Piazzolla e sua Música", que sairá pela editora espanhola Edhasa.
Na tese dos autores, a história do tango e de Piazzolla é uma sobreposição de "mal-entendidos": "Surge de danças de salão que mal entenderam danças afro-caribenhas, que são mal entendidas por espanhóis que a transcrevem e depois são mal entendidas por senhoritas que as tocam nos salões da Europa. E essas partituras, quando chegam aqui de volta, são mal entendidas por músicos de prostíbulos, das ruas, com pouca técnica. Por ler mal ou distinto, eles a transformam na música que se chama tango."
No caso de Piazzolla, Fischerman afirma que ele foi "salvo" por mal-entendidos. Foi o mal entendimento, ou o conhecimento "epidérmico" do jazz ou da música clássica, que o salvou de ser mais um bom músico nessas áreas para lançá-lo "numa produção original e potente".
A imagem vai mais longe: para o tango dos anos 50, lembra o crítico, Piazzolla representava "o mal", atentava contra o tango bailável e propunha o "para escutar". "Piazzolla era manco, odiava os bailarinos acrobatas. O paradoxo é "Adiós Nonino", atacado como "não-bailável", hoje está em qualquer show "for export" e é o que rende aos herdeiros."
Guiados pelos textos do crítico, a coleção agrada tanto ao iniciante ambicioso quanto ao iniciado. Os CDs trazem a capa original dos LPs e críticas que avaliam a evolução e os recuos do músico, e informam o contexto da época, quer da fracassada e simbólica guerra contra a Grã-Bretanha, quer do Piazzolla "correlato quase exato do gosto burguês ilustrado dos anos 60".
Além dos discos de Piazzolla, foram incluídos dois da cantora argentina Amelita Baltar, em que o músico toca, é o diretor musical e arranjador.
No formato, a coleção é simples, talvez simples demais. Compram-se os discos em separado, o que é bom, mas não existe caixa especial para quem quer ter os 13. Não há previsão de lançamento no Brasil e aos visitantes de Buenos Aires se informa: cada um custa 17,9 pesos (cerca de R$ 13), em média.

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