São Paulo, segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

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NELSON ASCHER

Lembranças de Budapeste

"Antípoda" é, segundo o dicionário Houaiss online, um "habitante do globo que, em relação a outro, vive em lugar diametralmente oposto" ou, etimologicamente, aquele cujas plantas dos pés (não obstante a distância) estão face a face com as de outrem. E, embora no sentido geográfico exato os húngaros não cheguem a ser nossos antípodas, nem os centro-europeus e/ou europeus orientais os dos latino-americanos e dos próprios vizinhos ocidentais, caso se fale em política, eles certamente são.
Aqui em Budapeste, por exemplo, Fidel Castro, Hugo Chávez e Jacques Chirac não têm fama de heróis, nem, para a maioria, a mereciam outrora Che Guevara, Salvador Allende, Patrice Lumumba, os vietcongues, os sandinistas, sobretudo porque, antes do colapso do "socialismo real", o regime despótico, incompetente, impopular (adjetivos não sempre sinônimos) e o partido único (quem precisa de dois?) que, apoiando-se em tropas estrangeiras (soviéticas) de ocupação, monopolizou durante meio século o poder no país -enfim, os tiranos autóctones- promoviam e celebravam em público os supracitados, batizando inclusive ruas, praças, escolas (des-ou-rebatizadas logo que possível) com seus nomes. Não bastasse isso, duplicando, triplicando, centuplicando as filas infinitas de pão e carne (e roupa de baixo, sabonete etc.), ajudavam aberta e orgulhosamente a financiá-los com os escassos recursos locais que a chefia moscovita não havia confiscado.
Daqui, portanto, eles eram (e seguem sendo) automaticamente mal (talvez corretamente) vistos, malgrado a desinformação oficial ter, lá pela derradeira década européia da utopia menos estimada por quantos não conseguiram se desvencilhar de suas bênçãos concretas, atingido tal refinamento que, conforme se concluíra então, nem sequer o oposto do que o governo e os meios (todos eles estatais) de comunicação afirmavam que corria (ao contrário do que às vezes sucede na BBC, France 5, ARTE) o risco de ser verdade.
Há, é claro, a esta altura, hungarozinhos que, habitando ainda, quando o Muro de Berlim caiu, os ovários maternos e testículos paternos, estão aptos agora a dirigir automóveis que a poupança somada de genitores e progenitores precavidos não teria bastado para adquirir. Tampouco faltam hungarazinhas da mesma idade que mal se lembram de seu penúltimo aborto, constatação essa que, com juros e correção monetária, aplica-se aos dias finais da ditadura militar brasileira.
Alguns desses, com a sabedoria característica dos adolescentes revoltados, podendo se dar ao luxo de idealizar tempos que não foram obrigados a experimentar, sentirão (tal qual, a seu modo, francesinhos e inglesinhas ou vice-versa) saudades do Exército Vermelho que não apenas lhes libertara os avós em 1945, como continuou a libertá-los dia e noite, sem cessar, até 1989. E, uma vez que sua nostalgia, porventura, estende-se à "sociedade solidária" contra a qual o grosso ingrato dos compatriotas se insurgiu 50 anos atrás, em outubro de 1956, tamanha desmemória acentua a importância educativa das comemorações programadas.
Além de refugiados, espiões, verbas para simpatizantes e armas para o Terceiro Mundo, o grande produto de exportação do bloco soviético eram as piadas. Infelizmente descontinuadas e em geral esquecidas, nada, seja o relato dos dissidentes, seja a obra de um Robert Conquest, fornecia um quadro tão fidedigno do paraíso compulsório como seu conjunto, e qualquer seleção meticulosa das mais incisivas e engraçadas (ou somente de minhas prediletas) requereria um tomo polpudo. Se sua opulência intelectual era inversamente proporcional à indigência do universo tematizado, um assunto, contudo, ocupava-lhes o centro, a saber, o caráter carcerário que fazia das "democracias populares" o maior presídio a céu aberto que já existiu.
Pois o que convém recordar com insistência a respeito do sistema que, recém-abolido deste continente, nem se desarraigou de corações e mentes devotos e inconformados, nem é menos capaz do que em seu apogeu de se implantar em recessos cranianos horrorizados pelo vácuo e pela incerteza, é que, da lista interminável de direitos que o Estado negava a seus servos involuntários, à sua propriedade privada viva, o principal e mais cobiçado era simplesmente o de fazer as malas (ou abandoná-las) e ir embora. O Muro de Berlim metáfora e ilustração da "Cortina de Ferro", dos milhares de quilômetros ininterruptos de cercas rigorosamente vigiadas -que cortavam a Europa do Báltico ao Adriático- fora erguido não para defender os alemães orientais de inimigos externos, mas sim para impedi-los de fugir rumo ao inferno "decadente" do capitalismo.
Assim, tendo em vista que a riquíssima história das ditaduras que oprimiam suas vítimas em nome de chavões sedutores não se memoriza com facilidade e quase nunca é levada a sério por quem não a tenha amargado pessoalmente, eis o mínimo que vale a pena recordar: húngaros e poloneses, tchecos e russos, búlgaros e romenos se reduziram, no correr de duas gerações, a objetos que suas lideranças possuíam, a um gado humano do qual dispunham e cuja evasão proibiam.
O resto dos campos de trabalhos forçados à solitária lâmpada de 40 watts iluminando uma sala inteira, da arrogância hierárquica à inépcia burocrática, do tédio absoluto ao medo da campainha noturna, dos Trabants, Skodas e Ladas tragicômicos (trágicos ontem, cômicos hoje) às vitrines (e lojas) vazias, da autocensura perpétua ao humor deliciosamente autocorrosivo são as conseqüências que decorrem logicamente da premissa central e que só gente muito culta e inteligente não consegue entender.

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