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NELSON ASCHER
Lembranças de Budapeste
"Antípoda" é, segundo o
dicionário Houaiss online, um "habitante do globo que,
em relação a outro, vive em lugar
diametralmente oposto" ou, etimologicamente, aquele cujas
plantas dos pés (não obstante a
distância) estão face a face com as
de outrem. E, embora no sentido
geográfico exato os húngaros não
cheguem a ser nossos antípodas,
nem os centro-europeus e/ou europeus orientais os dos latino-americanos e dos próprios vizinhos ocidentais, caso se fale em
política, eles certamente são.
Aqui em Budapeste, por exemplo, Fidel Castro, Hugo Chávez e
Jacques Chirac não têm fama de
heróis, nem, para a maioria, a
mereciam outrora Che Guevara,
Salvador Allende, Patrice Lumumba, os vietcongues, os sandinistas, sobretudo porque, antes do
colapso do "socialismo real", o regime despótico, incompetente,
impopular (adjetivos não sempre
sinônimos) e o partido único
(quem precisa de dois?) que,
apoiando-se em tropas estrangeiras (soviéticas) de ocupação, monopolizou durante meio século o
poder no país -enfim, os tiranos
autóctones- promoviam e celebravam em público os supracitados, batizando inclusive ruas,
praças, escolas (des-ou-rebatizadas logo que possível) com seus
nomes. Não bastasse isso, duplicando, triplicando, centuplicando
as filas infinitas de pão e carne (e
roupa de baixo, sabonete etc.),
ajudavam aberta e orgulhosamente a financiá-los com os escassos recursos locais que a chefia
moscovita não havia confiscado.
Daqui, portanto, eles eram (e
seguem sendo) automaticamente
mal (talvez corretamente) vistos,
malgrado a desinformação oficial
ter, lá pela derradeira década européia da utopia menos estimada
por quantos não conseguiram se
desvencilhar de suas bênçãos concretas, atingido tal refinamento
que, conforme se concluíra então,
nem sequer o oposto do que o governo e os meios (todos eles estatais) de comunicação afirmavam
que corria (ao contrário do que às
vezes sucede na BBC, France 5,
ARTE) o risco de ser verdade.
Há, é claro, a esta altura, hungarozinhos que, habitando ainda,
quando o Muro de Berlim caiu, os
ovários maternos e testículos paternos, estão aptos agora a dirigir
automóveis que a poupança somada de genitores e progenitores
precavidos não teria bastado para adquirir. Tampouco faltam
hungarazinhas da mesma idade
que mal se lembram de seu penúltimo aborto, constatação essa
que, com juros e correção monetária, aplica-se aos dias finais da
ditadura militar brasileira.
Alguns desses, com a sabedoria
característica dos adolescentes revoltados, podendo se dar ao luxo
de idealizar tempos que não foram obrigados a experimentar,
sentirão (tal qual, a seu modo,
francesinhos e inglesinhas ou vice-versa) saudades do Exército
Vermelho que não apenas lhes libertara os avós em 1945, como
continuou a libertá-los dia e noite, sem cessar, até 1989. E, uma
vez que sua nostalgia, porventura, estende-se à "sociedade solidária" contra a qual o grosso ingrato dos compatriotas se insurgiu 50
anos atrás, em outubro de 1956,
tamanha desmemória acentua a
importância educativa das comemorações programadas.
Além de refugiados, espiões,
verbas para simpatizantes e armas para o Terceiro Mundo, o
grande produto de exportação do
bloco soviético eram as piadas.
Infelizmente descontinuadas e
em geral esquecidas, nada, seja o
relato dos dissidentes, seja a obra
de um Robert Conquest, fornecia
um quadro tão fidedigno do paraíso compulsório como seu conjunto, e qualquer seleção meticulosa das mais incisivas e engraçadas (ou somente de minhas prediletas) requereria um tomo polpudo. Se sua opulência intelectual
era inversamente proporcional à
indigência do universo tematizado, um assunto, contudo, ocupava-lhes o centro, a saber, o caráter
carcerário que fazia das "democracias populares" o maior presídio a céu aberto que já existiu.
Pois o que convém recordar
com insistência a respeito do sistema que, recém-abolido deste
continente, nem se desarraigou
de corações e mentes devotos e inconformados, nem é menos capaz
do que em seu apogeu de se implantar em recessos cranianos
horrorizados pelo vácuo e pela incerteza, é que, da lista interminável de direitos que o Estado negava a seus servos involuntários, à
sua propriedade privada viva, o
principal e mais cobiçado era
simplesmente o de fazer as malas
(ou abandoná-las) e ir embora. O
Muro de Berlim metáfora e ilustração da "Cortina de Ferro", dos
milhares de quilômetros ininterruptos de cercas rigorosamente
vigiadas -que cortavam a Europa do Báltico ao Adriático- fora
erguido não para defender os alemães orientais de inimigos externos, mas sim para impedi-los de
fugir rumo ao inferno "decadente" do capitalismo.
Assim, tendo em vista que a riquíssima história das ditaduras
que oprimiam suas vítimas em
nome de chavões sedutores não se
memoriza com facilidade e quase
nunca é levada a sério por quem
não a tenha amargado pessoalmente, eis o mínimo que vale a
pena recordar: húngaros e poloneses, tchecos e russos, búlgaros e
romenos se reduziram, no correr
de duas gerações, a objetos que
suas lideranças possuíam, a um
gado humano do qual dispunham e cuja evasão proibiam.
O resto dos campos de trabalhos
forçados à solitária lâmpada de
40 watts iluminando uma sala inteira, da arrogância hierárquica
à inépcia burocrática, do tédio
absoluto ao medo da campainha
noturna, dos Trabants, Skodas e
Ladas tragicômicos (trágicos ontem, cômicos hoje) às vitrines (e
lojas) vazias, da autocensura perpétua ao humor deliciosamente
autocorrosivo são as conseqüências que decorrem logicamente da
premissa central e que só gente
muito culta e inteligente não consegue entender.
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