São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 2010

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DRAUZIO VARELLA

Imagens de Mianmar


Apesar de ser rica em recursos naturais, a nação é uma das mais pobres da Ásia


NUNCA TINHA visto remar com a perna. O remador, em pé na popa da canoa, segura a ponta superior do remo com a mão direita, passa a perna direita em volta dele e, com movimentos de vai e vem, empurra com o pé a pá do remo para dentro e para fora d'água. O braço esquerdo fica no ar para dar equilíbrio ao corpo.
A silhueta desses pescadores nas canoas vestidos com "longyis", panos compridos que caem até os tornozelos, presos à cintura com um nó duplo, é a imagem mais característica dos habitantes do lago Inle, situado no leste de Mianmar, país anteriormente conhecido como Birmânia, que faz fronteira com China, Laos e Tailândia, de um lado; Bangladesh e Índia, do outro.
Mianmar tem 47 milhões de habitantes, 70% dos quais em zona rural. Desde 1962, é governado por militares célebres por terem dispersado a tiros uma manifestação pacífica de monges budistas, em 2007, entre outros desmandos. Apesar de rica em recursos naturais, é uma das nações mais pobres da Ásia: renda per capita de US$ 1.900 anuais. Cerca de um terço da população vive com menos de US$ 1 por dia, mas o índice de analfabetismo não ultrapassa 5%.
No interior, há comunidades inteiras em casas de palha que irão para os ares à primeira ventania (como aconteceu na passagem do ciclone Nargis, que deixou 2 milhões de desabrigados, em 2008), carros de boi carregados de potes d'água colhida em poços distantes, micro-ônibus caindo aos pedaços e atulhados de gente até o teto, mulheres com balaio na cabeça e saco de lenha nas costas, bois atados a pilões para esmagar e retirar o óleo do amendoim, galinhas e porcos em liberdade, cachorros esquálidos que comem até casca de banana, poeira para todos os lados, calor tropical e crianças em profusão. Crianças que sorriem e dão adeus ao viajante quando passa.
Energia elétrica é luxo desconhecido nesses povoados. Em muitas cidades, ela faz visitas apressadas apenas à tarde. Mesmo em Yangon, antiga capital, com 5 milhões de habitantes, é fornecida em períodos de seis horas separados por outras seis de escuridão. Teoricamente, porque nunca se sabe se retornará no horário previsto.
A falta de luz torna as geladeiras domésticas objetos decorativos e obriga a ir às compras todos os dias.
A diversidade humana é a maior riqueza do país. Oficialmente, os mianmarenses são divididos em oito grupos étnicos, subdivididos em pelo menos 67 subgrupos. Os burmeses constituem quase 70% da população, detêm o poder e controlam a burocracia estatal. Como seria de prever, existe tensão em áreas povoadas por minorias étnicas, algumas das quais formaram exércitos de libertação que controlam regiões montanhosas de difícil acesso.
Embora presentes os jeans e as imitações baratas de uniformes militares, o isolamento impediu que a moda em Mianmar fosse contaminada pela massificação ocidental. Os "longyis" escuros vestidos pelos homens variam de uma região para a outra, os turbantes e as saias estampadas, multicoloridas, das mulheres também.
Estejam na cidade ou no campo, elas não saem de casa sem aplicar "tanaka" nas maçãs do rosto, pasta amarelada obtida ralando numa pedra a casca de uma árvore. Os desenhos são variados, geralmente retangulares, alguns com riscos paralelos, outros pontilhados, outros com forma de flores que eventualmente chegam à testa e descem pelo nariz. Não existe nada semelhante no universo feminino ocidental.
Trabalham mais do que os homens, mas beleza não lhes falta. Na juventude, têm os olhos puxados na medida exata para expor-lhes a timidez sensual do olhar oblíquo; na velhice, o rosto vincado da avó -no colo de quem qualquer um de nós gostaria de deitar a cabeça.
Entre eles, pobreza não está ligada à violência. É desconhecida para nós a sensação de andar pelas feiras ao ar livre entre pessoas de olhar desarmado, ouvindo vozes que apregoam em língua estranha mercadorias expostas no chão, entre sacos de arroz, legumes de formas bizarras, tangerinas miúdas, peixes recém-pescados, galinhas vivas, esteiras, cestos de palha, pimentas de todas as cores e outras especiarias que despertaram a cobiça dos colonizadores europeus.
Em contraste com o progresso vertiginoso de China, Cingapura, Coreia e outros vizinhos, Mianmar dá ao viajante uma ideia de como viviam os asiáticos cem anos atrás.


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