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MARCELO COELHO
No ateliê de Picasso
Uma curva desenhada meio
por acaso, que podia ser o
focinho de um cavalo, transforma-se alguns segundos depois nas
costas de um homem nu, sentado,
de perfil. Um objeto semelhante a
um bumerangue azul se revela,
graças a algumas manobras do
pincel, o cabelo de uma mulher
deitada. Quadros se inventam e
reinventam sem parar.
Estamos presenciando nada
menos do que o trabalho de Pablo
Picasso: ele cria uma tela atrás da
outra, num ateliê que é também
estúdio de cinema. O filme se chama "O Mistério de Picasso", foi
feito por Henri-Georges Clouzot
em 1956 e está agora disponível
em DVD.
Conforme o que eu entendi das
explicações que acompanham o
DVD, Clouzot conseguiu tintas e
papéis de um tipo especial, muito
transparente, para realizar o seu
documentário. Com isso, pôde colocar a câmera atrás dos quadros
que Picasso ia pintando, de modo
que a mão ou o corpo do artista
não obstruem a nossa visão do
que está sendo feito. Assim, a obra
de arte brota "sozinha" no filme,
traço a traço, mancha a mancha,
permitindo que acompanhemos
cada uma das decisões tomadas
por Picasso na elaboração de seus
quadros.
Ele "tateia o branco da tela como um cego", diz o locutor. O
componente de improvisação, de
acaso, parece de fato ser muito
grande na técnica do artista. Não
menos, contudo, do que o planejamento, a estratégia "de longo
prazo" que ele segue em cada pintura.
Dou um exemplo. Numa das seqüências mais extraordinárias do
filme, a cabeça de um touro começa a ser desenhada bem "direitinho", mas o pincel vai descendo,
e o bicho parece estar com as pernas trocadas, totalmente fora de
lugar, até que de uma região indistinta no alto da tela, parecendo um trapézio alongado, nasce a
perna de um toureiro, e aí o que
estava na cabeça de Picasso se
elucida: o touro foi captado no
momento em que, de golpe, levantava com os chifres o corpo do
inimigo. O descompasso entre as
patas e a cabeça do animal nada
mais era do que a torção triunfante e brutal de um ato de guerra; a perna do toureiro pende sem
defesa, e do desenho (até então
em preto-e-branco) explodem,
graças a um corte de Clouzot,
manchas vermelhas e douradas
de tinta, de sangue e de sol.
O jogo entre continuidade e interrupção na filmagem é feito
com maestria: seria cansativo assistir a todos os movimentos de
Picasso, pintando e repintando
seus quadros; um trabalho de cinco horas é resumido em dez minutos. Mas seria ainda mais decepcionante, é claro, não ter diante dos olhos o espetáculo de sua
capacidade inacreditável de criar
a partir do nada, de corrigir-se, de
fazer cem quadros a partir de um
só.
"Posso continuar a noite toda se
você quiser", diz Picasso ao diretor. Clouzot pergunta: "O que você quer fazer?". "Qualquer coisa",
responde o artista, metido numa
camiseta de operário, e põe-se a
trabalhar. Mais tarde, ele se diz
descontente com o que fizera até
ali. "Quero ir mais fundo; quero
pintar todos os quadros que estão
debaixo de um quadro."
Desse modo, dos desenhos do
início do filme, que tinham o ar
de caricaturas, passamos a telas
cada vez maiores, com um espectro de cores cada vez mais amplo,
até que o filme culmina com dois
longos episódios. Num deles, Picasso pinta uma mulher deitada,
refazendo o quadro não sei quantas vezes -e passa, na verdade,
por diversos estilos de sua carreira: a melancolia serena das primeiras fases, os volumes sólidos
do período neoclássico, até chegar
ao anguloso virtuosismo dos anos
50.
Curioso que, nessa mesma época, a "action painting" de Jackson
Pollock fazia da tela menos o lugar de um resultado pronto e
mais o campo em que se fizesse o
registro de sua própria atividade
pictórica. Um filme famoso mostra Pollock entregue à faina de
respingar a tela em várias direções. É como se Picasso e Clouzot
tivessem feito um "filme de ação
pintada".
De alguma forma, toda arte
moderna tem o sentido de valorizar menos o resultado pronto e
mais o seu próprio processo de
elaboração. Mostrando todas as
telas por trás das telas de Picasso,
Clouzot -competente realizador
de filmes policiais- leva-nos a
uma fascinante investigação,
cheia de suspense, com Picasso no
papel de detetive. Ou será de criminoso?
Pois cada quadro se faz e se destrói. Um desenho aparentemente
pronto vai se recobrindo de sombras; massas de cor escura parecem ir roendo as formas já construídas, a superfície da tela é pichada de preto, como se Picasso
não conseguisse parar: uma atividade física incessante, que, um
dos muitos milagres de sua personalidade, surge também como
uma força destrutiva e terrível.
Nada simboliza tanto esse conflito como os seus quadros de tourada, em que diversas vezes vemos o
ser humano vencido pelas investidas de uma força obscura, de
uma massa indomável que só responde a seu próprio peso, a seu
próprio impulso -e na qual Picasso representa, afinal, seu próprio gênio.
A palavra está em descrédito,
mas obviamente se aplica a Picasso. Idéias desse tipo sempre têm
um componente de mistério; "inspiração", quem sabe. Mas podemos entendê-las melhor pensando, por exemplo, num equilibrista
na corda bamba. Inclina-se para
um lado, talvez demais, e, logo em
seguida, contrabalança o movimento, forçando o peso na direção oposta; assim como Picasso, o
equilibrista "corrige-se" em face
do que acontece, mas sem deixar
nunca de seguir em frente. Seria
essa, imagino, uma lição para tudo o que nós mesmos fazemos na
vida.
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