São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

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MARCELO COELHO

No ateliê de Picasso

Uma curva desenhada meio por acaso, que podia ser o focinho de um cavalo, transforma-se alguns segundos depois nas costas de um homem nu, sentado, de perfil. Um objeto semelhante a um bumerangue azul se revela, graças a algumas manobras do pincel, o cabelo de uma mulher deitada. Quadros se inventam e reinventam sem parar.
Estamos presenciando nada menos do que o trabalho de Pablo Picasso: ele cria uma tela atrás da outra, num ateliê que é também estúdio de cinema. O filme se chama "O Mistério de Picasso", foi feito por Henri-Georges Clouzot em 1956 e está agora disponível em DVD.
Conforme o que eu entendi das explicações que acompanham o DVD, Clouzot conseguiu tintas e papéis de um tipo especial, muito transparente, para realizar o seu documentário. Com isso, pôde colocar a câmera atrás dos quadros que Picasso ia pintando, de modo que a mão ou o corpo do artista não obstruem a nossa visão do que está sendo feito. Assim, a obra de arte brota "sozinha" no filme, traço a traço, mancha a mancha, permitindo que acompanhemos cada uma das decisões tomadas por Picasso na elaboração de seus quadros.
Ele "tateia o branco da tela como um cego", diz o locutor. O componente de improvisação, de acaso, parece de fato ser muito grande na técnica do artista. Não menos, contudo, do que o planejamento, a estratégia "de longo prazo" que ele segue em cada pintura.
Dou um exemplo. Numa das seqüências mais extraordinárias do filme, a cabeça de um touro começa a ser desenhada bem "direitinho", mas o pincel vai descendo, e o bicho parece estar com as pernas trocadas, totalmente fora de lugar, até que de uma região indistinta no alto da tela, parecendo um trapézio alongado, nasce a perna de um toureiro, e aí o que estava na cabeça de Picasso se elucida: o touro foi captado no momento em que, de golpe, levantava com os chifres o corpo do inimigo. O descompasso entre as patas e a cabeça do animal nada mais era do que a torção triunfante e brutal de um ato de guerra; a perna do toureiro pende sem defesa, e do desenho (até então em preto-e-branco) explodem, graças a um corte de Clouzot, manchas vermelhas e douradas de tinta, de sangue e de sol.
O jogo entre continuidade e interrupção na filmagem é feito com maestria: seria cansativo assistir a todos os movimentos de Picasso, pintando e repintando seus quadros; um trabalho de cinco horas é resumido em dez minutos. Mas seria ainda mais decepcionante, é claro, não ter diante dos olhos o espetáculo de sua capacidade inacreditável de criar a partir do nada, de corrigir-se, de fazer cem quadros a partir de um só.
"Posso continuar a noite toda se você quiser", diz Picasso ao diretor. Clouzot pergunta: "O que você quer fazer?". "Qualquer coisa", responde o artista, metido numa camiseta de operário, e põe-se a trabalhar. Mais tarde, ele se diz descontente com o que fizera até ali. "Quero ir mais fundo; quero pintar todos os quadros que estão debaixo de um quadro."
Desse modo, dos desenhos do início do filme, que tinham o ar de caricaturas, passamos a telas cada vez maiores, com um espectro de cores cada vez mais amplo, até que o filme culmina com dois longos episódios. Num deles, Picasso pinta uma mulher deitada, refazendo o quadro não sei quantas vezes -e passa, na verdade, por diversos estilos de sua carreira: a melancolia serena das primeiras fases, os volumes sólidos do período neoclássico, até chegar ao anguloso virtuosismo dos anos 50.
Curioso que, nessa mesma época, a "action painting" de Jackson Pollock fazia da tela menos o lugar de um resultado pronto e mais o campo em que se fizesse o registro de sua própria atividade pictórica. Um filme famoso mostra Pollock entregue à faina de respingar a tela em várias direções. É como se Picasso e Clouzot tivessem feito um "filme de ação pintada".
De alguma forma, toda arte moderna tem o sentido de valorizar menos o resultado pronto e mais o seu próprio processo de elaboração. Mostrando todas as telas por trás das telas de Picasso, Clouzot -competente realizador de filmes policiais- leva-nos a uma fascinante investigação, cheia de suspense, com Picasso no papel de detetive. Ou será de criminoso?
Pois cada quadro se faz e se destrói. Um desenho aparentemente pronto vai se recobrindo de sombras; massas de cor escura parecem ir roendo as formas já construídas, a superfície da tela é pichada de preto, como se Picasso não conseguisse parar: uma atividade física incessante, que, um dos muitos milagres de sua personalidade, surge também como uma força destrutiva e terrível. Nada simboliza tanto esse conflito como os seus quadros de tourada, em que diversas vezes vemos o ser humano vencido pelas investidas de uma força obscura, de uma massa indomável que só responde a seu próprio peso, a seu próprio impulso -e na qual Picasso representa, afinal, seu próprio gênio.
A palavra está em descrédito, mas obviamente se aplica a Picasso. Idéias desse tipo sempre têm um componente de mistério; "inspiração", quem sabe. Mas podemos entendê-las melhor pensando, por exemplo, num equilibrista na corda bamba. Inclina-se para um lado, talvez demais, e, logo em seguida, contrabalança o movimento, forçando o peso na direção oposta; assim como Picasso, o equilibrista "corrige-se" em face do que acontece, mas sem deixar nunca de seguir em frente. Seria essa, imagino, uma lição para tudo o que nós mesmos fazemos na vida.


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