São Paulo, sábado, 16 de fevereiro de 2008

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Livros

"Quis imitar a vida de Hemingway"

Enrique Vila-Matas se inspira em "Paris É uma Festa" para memórias de juventude e diz que conhecer Marguerite Duras foi decisivo

Autor de "Paris Não Tem Fim" avalia que a "humanidade piorou" e que "a estupidez cresceu de forma muito espetacular"

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

Os anos de aprendizagem do jovem Enrique Vila-Matas não aconteceram exatamente como ele previa. Imaginando que era um Hemingway nas ruas de Paris, pronto para iniciar sua carreira literária com uma obra-prima que teimava em não aparecer, enfrentou nos anos 70 uma cidade cinzenta e cheia de armadilhas. Além disso, tinha uma Marguerite Duras no meio do caminho.
Assim pode ser resumida "Paris Não Tem Fim", a versão Vila-Matas de "Paris É uma Festa", clássico em que Ernest Hemingway retratou a "geração perdida" dos anos 20. No caso do espanhol Vila-Matas, a cidade era aquela que ainda ecoava Maio de 68, em que Roland Barthes estava na moda, Sartre já saía de moda, Nicholas Ray e a geração nouvelle vague eram cult e o café de Flore ainda não tinha sido invadido por turistas japoneses. No café preferido de Sartre, aliás, Vila-Matas batia ponto religiosamente.
"Eu fui viver em Paris para imitar a vida que Hemingway descrevia em "Paris É uma Festa'", disse o autor à Folha. "Mas desse livro só quis manter a estrutura. Tentei imitar da melhor maneira possível, ainda que soubesse -como realmente aconteceu- que acabaria não ficando nem um pouco semelhante".
Além de "ter aprendido a datilografar" e de ter escrito seu primeiro romance ("A Assassina Ilustrada"), a lição mais valiosa da sua passagem foi, com certeza, o encontro com a figura soturna e iluminada da escritora Marguerite Duras, que alugou um sótão para o espanhol. "Não me dei conta no momento, mas ela foi decisiva para mim, no plano literário e graças à apostila que me deu".

Manual para escritores
A apostila, no caso, é um manual sobre a arte de escrever que a autora de "O Amante" deu ao jovem inseguro que às vezes a importunava. "Admirava como era incorreta em tudo. Me ensinou a ser um escritor nada edificante", afirma com uma veneração que cresceu com o tempo. E emenda: "Estou farto dos escritores atuais que são tão puros, limpos e ordenados. Gosto de autores como Duras, que não estão no quadro de honra de nenhum colégio, que são conflituosos e pouco ou nada edificantes. E gosto dos que estão cheios de defeitos, mas têm um grande talento. O lado rebelde de Duras me deixava fascinado", diz. Quem chegar ao final do livro vai entender que a relação entre os dois na época não era exatamente de veneração.
Escritor de escritores, a obsessão por seguir os passos -literalmente- de outros autores é uma marca que ele mesmo tem o bom senso de discutir no livro. Um autor deve viver uma experiência pessoal exuberante e transformá-la em literatura (uma boa definição de Hemingway) ou está perdendo algo ao retomar a vida e o pensamento de outros escritores?
Há algo de borgiano na literatura de Vila-Matas, uma obsessão por abarcar todo o universo literário. O autor reconhece a influência, mas nega que seja um peso. "A herança de Borges nunca me prejudicou. Um grande escritor nunca poderia me inibir. Isso pode acontecer, por outro lado, com um mau escritor. E há vários deles, como você sabe bem."
Vila-Matas reconhece que jogou com a estrutura dramática do romance de formação para suas memórias de juventude e cita "A Educação Sentimental", de Flaubert: "Um jovem proviciano viaja para a capital do mundo para triunfar e decide regressar à sua cidade fracassado. Eu aprendi algo com a experiência."

Um espectro em Paris
Livro de maturidade, publicado em 2003, "Paris Não Tem Fim" foi escrito sob o impacto de uma grande decepção. "Regressei para escrever ironicamente sobre minha juventude, me sentei no café de Flore, tomei uma xícara e logo me levantei. Como fazia há 30 anos, fui para a rua Saint-Benoit, no número 5. Logo me dei conta de que já não tinha casa lá. Me senti um fantasma, um morto vivo, um homem que tinha regressado como um espectro ao local de sua juventude".
Juventude que afinal foi cheia de emoções, mesmo quando foi confundido no Quartier Latin com o terrorista venezuelano Carlos "Chacal". Os policiais se deram conta do engano, quase sentiram pena da sua vida estóica e se despediram citando o inspetor Maigret, o célebre personagem de Georges Simenon.
Paris mudou? "A humanidade piorou, e isso se nota em todas as partes de Paris, claro. Flaubert disse em 1850 que o mundo em poucos anos ficaria tremendamente imbecil, que era uma sorte viver naquele momento. Se visse como estamos hoje, ficaria paralisado porque a estupidez cresceu de forma muito espetacular."
E se estivesse nos seus 20 anos, ainda iria para Paris? "Iria para Nova York", diz. "Mas então desejaria ir viver em Londres, assim como quando estava em Paris queria estar em Nova York. E agora quero estar em Paris quando estou em Barcelona. Às vezes me recordo de [Fernando] Pessoa que, quando estava em Sintra, queria estar em Lisboa. E quando estava em Lisboa queria estar em Sintra".


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