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Livros
"Quis imitar a vida de Hemingway"
Enrique Vila-Matas se inspira em "Paris É uma Festa" para memórias de juventude e diz que conhecer Marguerite Duras foi decisivo
Autor de "Paris Não Tem Fim" avalia que a
"humanidade piorou" e que "a estupidez cresceu de
forma muito espetacular"
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
Os anos de aprendizagem do
jovem Enrique Vila-Matas não
aconteceram exatamente como ele previa. Imaginando que
era um Hemingway nas ruas de
Paris, pronto para iniciar sua
carreira literária com uma
obra-prima que teimava em
não aparecer, enfrentou nos
anos 70 uma cidade cinzenta e
cheia de armadilhas. Além disso, tinha uma Marguerite Duras no meio do caminho.
Assim pode ser resumida
"Paris Não Tem Fim", a versão
Vila-Matas de "Paris É uma
Festa", clássico em que Ernest
Hemingway retratou a "geração perdida" dos anos 20. No
caso do espanhol Vila-Matas, a
cidade era aquela que ainda
ecoava Maio de 68, em que Roland Barthes estava na moda,
Sartre já saía de moda, Nicholas
Ray e a geração nouvelle vague
eram cult e o café de Flore ainda não tinha sido invadido por
turistas japoneses. No café preferido de Sartre, aliás, Vila-Matas batia ponto religiosamente.
"Eu fui viver em Paris para
imitar a vida que Hemingway
descrevia em "Paris É uma Festa'", disse o autor à Folha. "Mas
desse livro só quis manter a estrutura. Tentei imitar da melhor maneira possível, ainda
que soubesse -como realmente aconteceu- que acabaria
não ficando nem um pouco semelhante".
Além de "ter aprendido a datilografar" e de ter escrito seu
primeiro romance ("A Assassina Ilustrada"), a lição mais valiosa da sua passagem foi, com
certeza, o encontro com a figura soturna e iluminada da escritora Marguerite Duras, que
alugou um sótão para o espanhol. "Não me dei conta no
momento, mas ela foi decisiva
para mim, no plano literário e
graças à apostila que me deu".
Manual para escritores
A apostila, no caso, é um manual sobre a arte de escrever
que a autora de "O Amante"
deu ao jovem inseguro que às
vezes a importunava. "Admirava como era incorreta em tudo.
Me ensinou a ser um escritor
nada edificante", afirma com
uma veneração que cresceu
com o tempo. E emenda: "Estou farto dos escritores atuais
que são tão puros, limpos e ordenados. Gosto de autores como Duras, que não estão no
quadro de honra de nenhum
colégio, que são conflituosos e
pouco ou nada edificantes. E
gosto dos que estão cheios de
defeitos, mas têm um grande
talento. O lado rebelde de Duras me deixava fascinado", diz.
Quem chegar ao final do livro
vai entender que a relação entre os dois na época não era
exatamente de veneração.
Escritor de escritores, a obsessão por seguir os passos -literalmente- de outros autores
é uma marca que ele mesmo
tem o bom senso de discutir no
livro. Um autor deve viver uma
experiência pessoal exuberante e transformá-la em literatura (uma boa definição de Hemingway) ou está perdendo algo ao retomar a vida e o pensamento de outros escritores?
Há algo de borgiano na literatura de Vila-Matas, uma obsessão por abarcar todo o universo
literário. O autor reconhece a
influência, mas nega que seja
um peso. "A herança de Borges
nunca me prejudicou. Um
grande escritor nunca poderia
me inibir. Isso pode acontecer,
por outro lado, com um mau escritor. E há vários deles, como
você sabe bem."
Vila-Matas reconhece que jogou com a estrutura dramática
do romance de formação para
suas memórias de juventude e
cita "A Educação Sentimental",
de Flaubert: "Um jovem proviciano viaja para a capital do
mundo para triunfar e decide
regressar à sua cidade fracassado. Eu aprendi algo com a experiência."
Um espectro em Paris
Livro de maturidade, publicado em 2003, "Paris Não Tem
Fim" foi escrito sob o impacto
de uma grande decepção. "Regressei para escrever ironicamente sobre minha juventude,
me sentei no café de Flore, tomei uma xícara e logo me levantei. Como fazia há 30 anos,
fui para a rua Saint-Benoit, no
número 5. Logo me dei conta
de que já não tinha casa lá. Me
senti um fantasma, um morto
vivo, um homem que tinha regressado como um espectro ao
local de sua juventude".
Juventude que afinal foi
cheia de emoções, mesmo
quando foi confundido no
Quartier Latin com o terrorista
venezuelano Carlos "Chacal".
Os policiais se deram conta do
engano, quase sentiram pena
da sua vida estóica e se despediram citando o inspetor Maigret, o célebre personagem de
Georges Simenon.
Paris mudou? "A humanidade piorou, e isso se nota em todas as partes de Paris, claro.
Flaubert disse em 1850 que o
mundo em poucos anos ficaria
tremendamente imbecil, que
era uma sorte viver naquele
momento. Se visse como estamos hoje, ficaria paralisado
porque a estupidez cresceu de
forma muito espetacular."
E se estivesse nos seus 20
anos, ainda iria para Paris?
"Iria para Nova York", diz.
"Mas então desejaria ir viver
em Londres, assim como quando estava em Paris queria estar
em Nova York. E agora quero
estar em Paris quando estou
em Barcelona. Às vezes me recordo de [Fernando] Pessoa
que, quando estava em Sintra,
queria estar em Lisboa. E quando estava em Lisboa queria estar em Sintra".
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