São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

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Susto em Berlim

Com pouca projeção internacional, cinema do Peru conquista o principal prêmio do festival com "La Teta Asustada"; à Folha, a diretora Claudia Llosa fala sobre a guerra civil que atingiu seu país e os desafios dos filmes latino-americanos

Hannibal Hanschke/Reuters
A diretora Claudia Llosa, de apenas 32 anos, com o Urso de Ouro depois da premiação no Festival de Berlim

SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A BERLIM

A atriz britânica Tilda Swinton ("Conduta de Risco", "O Curioso Caso de Benjamim Button") nunca tinha ouvido falar da diretora peruana Claudia Llosa, até assumir a presidência do júri oficial do 59º Festival de Berlim.
Não é demérito de Swinton. Pouca gente no universo do cinema havia fixado o nome da cineasta, que contava com um único longa-metragem no currículo, "Madeinusa" (2006), exibido no Brasil no circuito dos festivais e na TV a cabo.
Na noite do último sábado, quando Swinton anunciou o Urso de Ouro para "La Teta Asustada", o segundo longa de Llosa, 32, um "ôooooooh" ecoou na plateia, dando forma à surpresa de pessoas para quem a assinatura Claudia Llosa agora quer dizer alguma coisa -a primeira vitória do Peru num dos três mais importantes festivais de cinema do mundo.
"Estou muito feliz. Muito feliz. É uma grande honra", repetia a diretora, após a premiação. Na véspera da vitória, quando recebeu a Folha para uma entrevista, Llosa não parecia acreditar na possibilidade de ganhar. "É muito difícil. Para mim, já é um grande prêmio estar aqui [entre os 18 concorrentes ao Urso de Ouro]."

"Ferida perpétua"
Realizado em co-produção com a Espanha, "La Teta Asustada" é um filme sobre o medo decorrente do terrorismo e condensa a visão de Llosa sobre como seu país deve enfrentar essa questão. "Queria me referir à permanência perpétua da ferida. Falar das feridas emocionais que provoca uma guerra civil, uma guerra entre irmãos, e como isso se transmite de geração a geração."
Entre 1980 e 2000, o Peru enfrentou combates internos entre grupos terroristas (sobretudo o Sendero Luminoso) e as forças armadas. A Comissão Verdade e Reconciliação, estabelecida após o fim dos conflitos, estima que em torno de 75 mil pessoas foram assassinadas nesse período, em que os estupros eram corriqueiros.
Llosa afirma que "é um medo invisível o que a nova geração recebe" e avalia "que ele é pior, porque você não sabe como se defender". Para ela, "diante de um perigo iminente, o ser humano reage. Mas, diante de um perigo difuso, abstrato, é difícil se defender e aí começam os problemas escondidos".

Síndrome do medo
A jovem Fausta (Magaly Solier), protagonista de "La Teta Asustada", lida com as consequências de um medo que carrega por herança -daí o título do filme, que expressa síndrome transmitida pelo leite materno, segundo crença popular.
A mãe de Fausta foi vítima de estupro. Temendo também ser violada, ela recorre a um expediente que altere sua anatomia, de tal forma que seja impossível a penetração.
Cantora e compositora na língua indígena quéchua, Fausta, que emigra do interior do país para Lima, permite-se cantar apenas para si mesma e vai trabalhar como empregada na casa de uma mulher representante da parcela branca e rica da sociedade peruana.
Ao entregar nas mãos de Fausta o controle de um portão de garagem que deixa do lado de fora a vibração de uma feira popular e de dentro, uma mansão, o filme sintetiza numa imagem a atração de Llosa "por essa mistura de culturas e também entre o moderno e o arcaico; as raízes e o futuro do Peru".
Além disso, a imagem reforça o eixo do roteiro, escrito por Llosa. "Que tenhamos todos a consciência de que não é porque a guerra terminou que o problema se foi. Não é porque você fecha a porta da garagem da sua casa que o problema desaparece", afirma.

Sabedoria andina
Na opinião da diretora, "um povo sábio como o andino soube utilizar todos os seus recursos -as danças, os cantos, os mitos- para poder falar do que aconteceu e reciclar-se de forma inconsciente". Mas afirma que "é o momento da consciência, de tornar claro que cantar para dentro não basta. É hora de começar a cantar para fora".
Em "Madeinusa", Llosa abordou uma festa popular peruana na qual o pecado é suprimido por três dias, tornando todos os atos livres de culpa. Por retratar tradições andinas, os filmes da diretora são por vezes classificados como "exóticos" por uma parcela da crítica não familiarizada com o universo ao qual se referem.
"Aceito o fato de que o filme terá mil interpretações. Esse tipo de filme inclui esse risco, mas o importante é não se fixar no que vão pensar a priori e deixar que isso de alguma maneira debele ou sucumba sua obra. Acho que seria condescendente da minha parte não utilizar algo [nos filmes] pensando em como iriam interpretá-lo no exterior", afirma Llosa.
A diretora gostaria de ver um incremento no número de filmes latino-americanos que se dediquem a retratar como os povos da região lidam com suas próprias raízes. "Necessitamos de mais vozes que mostrem outras facetas dos nossos países. Temos que, aos poucos, romper com esse olhar estereotipado que enxerga nesses filmes o exótico ou acha que queremos mostrar a miséria para vender. Não podemos cair nisso. Eu, pelo menos, tento não cair."


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