São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

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Crítica/CD/The Piano Sonatas - Vol. 8

Pianista Schiff reelabora as Sonatas de Beethoven

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Um detalhe na introdução da Sonata op. 111 serve para definir o caráter dessa gravação das últimas três sonatas de Beethoven (1770-1827) pelo pianista András Schiff. A introdução é lenta e "majestosa", como indica o compositor. No último compasso antes de virar "Allegro con brio ed appassionato", a mão esquerda começa um trinado, na região grave (faixa 8, 1'25). Está grafado em fusas: 32 notas por compasso. O trinado continua, sem interrupção, no compasso seguinte (1'29), mas escrito em semicolcheias: 16 notas por compasso.
A maioria dos pianistas acelera o tempo nessa passagem. É o que se escuta, por exemplo, nas gravações de Guiomar Novaes (de 1966), Daniel Barenboim (1984) e Sviatoslav Richter (1991). Já Schiff adota outra leitura. Baseado na proporção matemática (32/16), assume que o pulso do "Allegro" deve ser o dobro do da introdução -o que, por sua vez, significa que a introdução não é tão lenta como habitualmente se toca. Parece um detalhe, mas não é. Para um pianista desse porte, não existe diferença entre atenção analítica à partitura e compreensão poética da música. Tanto mais em três obras como essas, realizações supremas do chamado "estilo tardio" de Beethoven, em que a forma, levada ao limite, vira o desafio da música: cada elemento, cada pequeno acontecimento será elaborado até que a música consiga, afinal, se liberar de si.
O trinado em fusas e semicolcheias da op. 111 foi comentado em detalhe por Charles Rosen, autor do estudo de referência sobre o estilo clássico ("The Classical Style", 1971), num outro livro, só sobre as sonatas de Beethoven: "Beethoven's Piano Sonatas" (2002). Citado por Schiff na longa entrevista do encarte, Rosen está entre as bases musicológicas desse último CD, assim como dos sete precedentes, compondo a integral das Sonatas de Beethoven pelo pianista húngaro.

Fala sufocada
Baseado diretamente nele ou não, o que se escuta são dezenas de pequenas diferenças de fraseado, articulação, dinâmica e uso do pedal, às vezes com efeito dramaticamente novo. Veja-se a reprise da "Arietta", no terceiro movimento da Sonata op. 110. Schiff interpreta a primeira versão da melodia como música "vocal", o que todo mundo faz; mas como ninguém, depois, encena dificuldades de enunciação -uma fala sufocada, entrecortada- nessa repetição estranha e ainda mais expressiva da melodia. Sem falar no próprio instrumento: contrariando a unanimidade atual do Steinway, ele alterna esse com um Bösendorfer vienense, mais aveludado. "Não é por acaso que [o vienense] Schubert [17979-1828] soa especialmente bem num Bösendorfer", escreve Schiff. "E muitas das sonatas de Beethoven nos fazem pensar em Schubert [...]" Qualquer ouvinte atento pode perceber a diferença, aqui, entre o Bösendorfer da Sonata op. 109 e o Steinway das outras duas.
Sobre isso também, não dá para dizer que é um detalhe. É o piano. É o corpo e o espírito da música, elaborada em chave própria por um grande artista.



LUDWIG VAN BEETHOVEN - THE PIANO SONATAS - VOL. 8
Artista: András Schiff
Gravadora: ECM
Quanto: US$ 17,98 (R$ 40,63, mais taxas; www.amazon.com)
Avaliação: ótimo



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