São Paulo, sexta-feira, 16 de março de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Aquele abraço

Ninguém esperava que Lula e Bush se engalfinhassem por conta de divergências

JORNAIS E revistas, na semana passada, deram destaque à foto de Lula e Bush unidos num abraço que pareceu a todos sincero, afetuoso de parte a parte.
Ninguém esperava que os dois se engalfinhassem por conta das divergências pessoais e políticas que marcam as relações do Brasil com os Estados Unidos. Cada qual ficou na sua, Lula não se comprometeu a romper relações de amizade com Chávez, Bush não prometeu mudar a legislação de seu país sobre o comércio dos nossos produtos.
Mesmo assim, o abraço (que em breve se repetirá em Camp David) foi positivo, Lula poderia se recusar ao gesto de amizade, alegando a malignidade do satanás de plantão. E Bush poderia recusar qualquer tipo de intimidade com o presidente de um país que condenou a invasão do Iraque - pedra de toque que ficará marcando sua participação no cenário internacional do nosso tempo.
E por falar no Iraque, lembro o abraço que ficou faltando entre o mesmo Bush e Saddam Hussein. Não se trata de um delírio do cronista. Dias antes da invasão, o ditador iraquiano deu uma entrevista a uma rede de televisão norte-americana, convidando Bush a um encontro pessoal. Que ele viesse acompanhado de seus principais assessores, técnicos e informantes para verificar se havia ou não armas de destruição em massa em algum ponto do território iraquiano.
Delegações internacionais e da própria ONU já haviam feito os relatórios negando a existência deste arsenal apocalíptico, mas Bush continuava brandindo suas acusações sobre o poder destruidor das armas inexistentes de Saddam Hussein. Mentira que já custou e continuará custando milhares de mortes e colocou Bush no patamar de vilania no qual se encontra.
Bush não respondeu ao apelo, já estava em negociações com outros chefes de Estado para apoiarem a invasão, ele desejava destruir Saddam Hussein de qualquer maneira, obrigou o general Colin Powell a exibir as provas do arsenal inexistente. E partiu para uma guerra que ainda não acabou, livrando-se de seu inimigo, que terminou na forca, julgado e condenado pela Justiça iraquiana, mas por outros crimes pontuais de sua ditadura e não pelas armas de destruição em massa que ele não tinha.
Se Bush tivesse aceitado o apelo de Saddam Hussein, não precisaria abraçá-lo afetuosamente, tal como fez com Lula. Bastaria o encontro em si para desarmar o dispositivo de guerra que já estava montado, pelo menos adiaria por tempo indeterminado a invasão, até que fossem criadas novas condições para um novo ultimato.
Uma guerra - já foi dito por aí- é a continuação da diplomacia por outros meios, os meios da força bruta que nada têm de diplomático. E Bush queria a guerra, repetindo o argumento do lobo contra o cordeiro na fábula de Esopo.
Evidente que Saddam não podia ser comparado a um cordeiro, mas naquele episódio -o do arsenal que não possuía- estava sem a culpa alegada pelo lobo para destruí-lo.
Dizem que a fome de um lobo é formidável. Por necessidade de ofício e por gosto pessoal, Bush continua sendo o lobo catando no cenário internacional os cordeiros que nem sempre são mansos e inofensivos, como Chávez, Morales e o próprio Lula, que atravessa uma temporada realmente inofensiva aos interesses dos Estados Unidos. Daí ter recebido o abraço carinhoso, sagrando-o como o líder da América Latina para o gosto de Bush e do próprio Lula, que está vendo sua liderança continental sumir pelo ralo do petróleo de Chávez e do gás de Morales.
Há sempre uma moeda para pagar os almoços que nunca são grátis. Lula não dispõe de petróleo suficiente nem de gás bastante para negociar mas tem canaviais à beça para poupar o milho de onde os norte-americanos obtêm um combustível alternativo. Pode e deve ser considerado um "friend", tal como Roosevelt considerava Vargas, chamando-o de "my friend Vargas".
E foram realmente amigos: Vargas cedeu a Roosevelt a base militar de Natal para abastecer os exércitos aliados que lutavam no norte da África contra os tanques nazistas. E Roosevelt colocou a construção da usina de Volta Redonda entre as prioridades do esforço de guerra que os Estados Unidos atravessavam.
Da amizade dos dois líderes resultaram benefícios concretos para os dois países. Donde se conclui que um abraço pode mudar a história, mesmo que seja na base do toma lá e dá cá.


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