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"A música, agora, é simplesmente um som"
Vítima de doença súbita, inglês busca caminhos para reencontrar sua "grande paixão'; "Preciso brigar para ouvir música", diz ele
Crítico relata o sofrimento de ouvir melodias após perder parte da audição
NICK COLEMAN
DO "GUARDIAN"
Eu estava me sentindo
estranho. Mais lânguido do que costumo, nas
manhãs. Minha cabeça parecia
mais densa, como se a tivessem
enchido de areia durante a noite. Mas era minha vez de preparar o chá, e por isso rolei na cama e... pfff. Um ouvido parou de
funcionar. Depois, quando tentei me sentar, eu não conseguia
parar direito em posição perpendicular. O quarto parecia
flutuar. Os "pês" e os "efes" nos
meus ouvidos se tornaram
mais barulhentos. Senti enjôo.
A perda auditiva neurossensorial súbita (SNHL, em inglês)
tem esse nome porque ninguém pensou em designação
melhor -basicamente porque
ninguém sabe direito o que seja. O que se conhece sobre o
problema são seus efeitos: a audição desaparece subitamente,
e a vítima perde todo senso de
equilíbrio. Qualquer movimento resulta em vertigem aguda e
vômito. O paciente pode perder
a visão, igualmente. As causas
mais prováveis são virais ou
vasculares, e resultam em que
partes importantes do aparelho neural fiquem privadas de
sangue. Danos permanentes
são infligidos às células capilares do ouvido interno, que servem como condutores vitais de
informação ao cérebro. Quando elas são destruídas, não retornam mais. A SNHL é realmente uma doença calamitosa.
"Fique firme"
Uma hora depois do primeiro
ataque, quando minha mulher
e meus dois filhos me carregaram imóvel, nauseado e incoerente para o consultório de
nosso médico, o primeiro pensamento dele foi que eu tivesse
um tumor no cérebro. No hospital, uma tomografia revelou
que não era esse o caso. "Fique
firme", me disseram.
"Mas a audição é meu sentido favorito. Preciso de ouvidos
para trabalhar. A música é a
grande paixão da minha vida.
Escrevo sobre ela, e também
toco um pouco. Preferiria perder um pé, um olho..."
"Não garantimos que toda a
audição retornará", o cirurgião
respondeu. "Mas não se preocupe. Pode ser que volte". Depois, ele aprimorou sua definição anterior. "De qualquer jeito, muita gente leva uma vida
completamente normal com
apenas um ouvido."
Saí do hospital uma semana
depois, profundamente surdo
em um ouvido, e com meu cérebro se recusando a permitir que
eu me esquecesse do fato. A
reação do cérebro à perda foi
lotar minha cabeça de som.
Imagine o som de ar pressurizado escapando de uma válvula
de aquecimento central. É esse
o som que ocupa o hemisfério
direito do meu cérebro.
Não estamos falando de um
zumbido comum nos ouvidos; a
sensação surge em resposta a
impulsos recebidos pelo meu
ouvido funcional. É um equivalente auditivo à sensação de pacientes de amputação que percebem seus membros amputados como ainda presentes. Meu
cérebro está gerando som o suficiente para compensar a falta
de atividade auditiva no meu
ouvido.
Sem prazer
E o que acontece com a música, nesse caso? Ela praticamente desaparece. Uma boa comparação é que posso escutar música, mas não ouvi-la, pelo
menos não por prazer. O que
ouço é monofônico e vem no
extremo mais distante de qualquer que seja o rugido que parece estar ocupando minha cabeça. A música, agora, é simplesmente um som. Deixou de
ser, para mim, aquilo que representou por uns bons 40 dos
meus 47 anos, até o final de
agosto de 2007.
Não sei como vocês ouvem
música. Imagino que, se gostam realmente de música, ela
adquire uma espécie de terceira dimensão em suas cabeças,
uma dimensão que sugere espaço e superfície, profundidade
de campo e textura.
No que tange a mim, eu costumava ouvir "edifícios", formas tridimensionais de substância e tensão arquitetônica.
Não "via" esses edifícios à maneira sinestésica tradicional; eu
mais os sentia. Eram formas
dotadas de "pisos", "paredes",
"tetos", "janelas", "porões". Expressavam volume. Música para mim sempre foi um belo recipiente tridimensional, um vaso, tão bela à sua maneira quanto um navio, uma catedral ou
uma tenda, com porções internas e externas e espaços internos subdivididos.
O célebre neurologista e escritor Oliver Sacks recentemente publicou um livro, "Alucinações Musicais", que gira em torno da relação entre o cérebro e a música. Nele, Sacks
conta a história de um certo dr.
Jorgensen, que perdeu toda a
audição em um ouvido depois
de uma operação em um nervo.
Como eu, ele passou a considerar música como algo bidimensional, pouco envolvente, como
um desenho técnico. Mas ele
não sofria dos zumbidos no ouvido. O ouvido que ele perdeu
se mantinha deliciosamente
inerte. E ainda assim a música
lhe parecia intoleravelmente
monótona.
Dieta musical
Comecei a conduzir pequenas experiências pessoais. Não
ousei voltar a ouvir minhas músicas favoritas, por medo do
possível resultado (imaginem
Miles Davis como um som de
papel sendo rabiscado), mas
alimentei meu bom ouvido
com uma dieta constante de
música nova e potencialmente
interessante (e nada ruidosa),
na esperança de que algo de desejável pudesse acontecer.
E, em 11 de novembro, desci
inseguro as escadas para assistir à cerimônia que celebra a
data de encerramento da Primeira Guerra Mundial, no Cenotáfio de Londres, em especial
"Nimrod", executada pela banda dos guardas, seguida por
"When I Am Laid to Earth", de
ópera de Purcell "Dido and Aeneas", e pela "Marcha Fúnebre" de Beethoven: sobretudos
cinzentos, trombones graves, a
completa imobilidade. Comovo-me toda vez. A cada ano eu
assistia à cerimônia, sempre à
espera do infalível impacto de
"Nimrod" sobre o meu metabolismo, fascinado pela emoção
que serpenteava pelo meu corpo, de seu ponto de origem à
boca do estômago, lenta como a
marcha da morte dos guardas.
Trata-se de uma sensação extraordinária, tornada ainda
mais notável pela sua completa
e absoluta previsibilidade.
Por isso, liguei a TV e me acomodei para assistir. E se nada
acontecesse? Não precisava ter
me preocupado. Bastou que
David Dimbledy anunciasse "e
agora, das "Variações Enigma",
de Elgar", para que eu ficasse
completamente emocionado,
antes mesmo que o primeiro
músico dos guardas levasse o
instrumento aos lábios.
Sim, claro, eu estava chorando pela perda dos meus cílios
auriculares. Mas era igualmente evidente que minha psique
não aceitaria o risco de que eu
me tornasse incapaz de sentir
qualquer coisa diante de música tão claramente emotiva. E
não era essa a parte interessante. O verdadeiramente interessante era o fato de que, enquanto eu tremia e derramava lágrimas sentado diante da TV, comecei a ouvir melhor a música.
Melodia, métrica, uma certa dose de timbre, a mais convoluta das nuvens de harmonia.
Comecei a sentir uma distante sensação de forma arquitetônica se formando em minha cabeça. Não era o Taj Mahal, mas tampouco era o ruído de um rabisco em um papel.
Ao final da cerimônia, coloquei o Purcell em meu aparelho
de som. Imaginei que, se a televisão havia me propiciado tamanha sensação, ouvir a música em um bom aparelho de som, com alto-falantes decentes, seria muito melhor. Mas a
sensação que me sobreveio foi
de desconforto, incompreensão. A música era praticamente
ilegível. E certamente insuportável. Desliguei o aparelho, e
deixei que o rugido em minha
cabeça se aquietasse.
Oliver Sacks veio a Londres
uma ou duas semanas mais tarde, para falar sobre seu livro.
Gentilmente concordou em me
receber. Acomodamo-nos no
saguão de seu hotel, e ele me
ouviu com atenção, tomando
notas. Parecia interessado em
minha experiência durante a
cerimônia e em minha teoria
mal formulada sobre a música
como uma espécie de tubo de
ensaio emocional. Depois, me
contou ter havia pouco tempo
perdido a visão em um olho e
que isso o havia arrasado.
Sacks passou a vida fascinado
pelo fenômeno da estereoscopia e dedicou boa parte de seus
conhecimentos experimentais
a ele. Sacks, desde a infância,
estudou os aspectos científicos
e de espetáculo relacionados ao
fato de que vemos com dois
olhos, e desenvolveu um afeto
quase metafísico pela estereoscopia e sua capacidade de tornar o mundo adorável, bem como habitável. Ele apontou com o polegar, pela janela do café do
hotel, e dirigiu minha atenção à
folhagem espessa, mutável, que
se podia ver do outro lado do vidro. "Antes", afirmou, "eu tinha
intenso prazer em acompanhar
os movimentos de superfícies
vegetais intrincadas, e com a
maneira pela qual percebemos
profundidade e distinção nos
mais complexos ambientes visuais. Mas agora", ele hesitou,
sem querer forçar a comparação, "tudo me parece complemente chato".
O monofônico e o monoscópico claramente compreendiam o sofrimento que o outro
sentia e concordaram em se
corresponder.
Led Zeppelin
Alguns dias mais tarde, cambaleei até uma pré-estréia de
"The Song Remains the Same",
o filme que mostra uma turnê
do Led Zeppelin e está sendo
lançado em DVD, com som remasterizado. É um filme idiota,
mas gosto dele, e me parecia
uma oportunidade ideal de testar uma ou duas coisas: primeiro, o significado da familiaridade na resposta emocional à música, e, segundo, se procedia a
vaga sensação que senti ao assistir à cerimônia no Cenotáfio,
a de que a imagem podia ajudar
no processo de ouvir música.
(Sei que vocês estão aí pensando: "Led Zeppelin? Emoção? Você deve ser o maior esquisito". Mas a verdade é que o Led Zeppelin sempre me propiciou grande prazer emocional, e suspeito de que esse prazer não difira muito daquele
que Sacks sentia ao observar o
movimento das folhas.)
Estrondo tombo pancada.
Consegui agüentar três canções e saí do cinema segurando
a cabeça com as mãos, completamente desorientado. O zumbido nos ouvidos me conduziu
ao limiar da dor física. Grande
proporção da música era simplesmente indistinguível. A
guitarra de Jimmy Page, em especial, parecia uma tempestade
de som desafinado.
Sei que o único jeito de avançar, em minha situação, é continuar ouvindo música, ainda
que doa. Quanto mais ouvir,
maior a chance de adaptação do
córtex, mas também maior a
chance que minha memória terá de me ajudar a redescobrir a
sensação do que a música costumava trazer.
Desconforto
A música sempre me penetrou sem esforço, isso foi sempre uma parte do prazer que ela
me propiciava. Seu poder de invadir, saturar, era sua maior
força. E, em resposta, sempre
me senti deliciado por ser o recipiente passivo. Mas isso já
não funciona. Agora, preciso
brigar para ouvir música, resistir ao desconforto que o processo de audição causa e abrir espaço para que a música possa se
mover mais em minha cabeça
-e também, evidentemente,
ou pelo menos assim espero
com grande fervor, para que a
música um dia reconquiste seu
esplendor tridimensional e devolva meus edifícios.
Tradução de PAULO MIGLIACCI .
NA INTERNET
www.folha.com.br/080732
leia a íntegra do texto de Nick
Coleman
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