São Paulo, segunda, 16 de março de 1998

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TIM MAIA
Cantor ia sempre além

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Sobre ele, é preciso de início reafirmar o ululante: foi o implantador da soul music à brasileira. Isso é pouco, entretanto.
Dois outros homens, em especial -e deles poucos hão de dizer que sejam soulmen brasileiros-, devem tudo e um pouco mais aos ensinamentos de mestre Tim Maia: Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
Antes, tudo era jovem guarda -e Tim já estava no pedaço, influenciando pelas beiradas (pois ele próprio demorava a acontecer de fato, por seus próprios méritos) a tomada do poder pop por Roberto e Erasmo.
A estréia de Tim em disco, em 70, é paralela à primeira guinada artística de Roberto Carlos.
Sim, é difícil imaginar, mas Roberto, por volta de 69, abandonava a juvenília jovem guarda e se transformava em... soulman.
Como o fazia? Cantando balada ("Sua Estupidez", "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos"), gospel ("Jesus Cristo", "Ana", "Todos Estão Surdos"), funk ("Não Vou Ficar", composta adivinha por quem?).
Erasmo não tardou a seguir seus passos, concebendo sua obra-prima, "Carlos, Erasmo" (71), com torpedos soul como "Mundo Deserto" e "Sodoma e Gomorra".
Reunidos, os trabalhos 69-71 dos dois artistas brancos configuram fases de estado de graça -e, o que sempre passa batido, fundamentalmente tributárias do trabalho que Tim Maia, por si só, começava a desenvolver.
E o dele era, de fato, mais complexo que os dos colegas mais ricos. "Primavera (Vai Chuva)" e "Eu Amo Você", de Cassiano, temas-mito do primeiro disco, chegavam com cor de manifestos de apresentação do soul nacional -o mesmo fazia "Azul da Cor do Mar", composta pelo próprio dono da voz.
Tim ia além. Apaixonava-se pelo pop negro norte-americano, mas não negava a raça. Carioca, preencheu seu soul americanófilo com doses fartas de saber do sertão -pensou em mangue beat? Pois é.
Seu disco de estréia se abria com "Coroné Antônio Bento", forrozão de João do Vale e Luiz Wanderley, e seguia com "Padre Cícero", antológico soul messiânico em homenagem ao mesmo.
As fusões regionalistas se mantiveram nos discos seguintes, em "A Festa do Santo Reis", "Salve Nossa Senhora" (71), "Canário do Reino" (72), todas a fuçar formalmente as entranhas do Brasil.
Ao mesmo tempo, Tim começava a cantar em inglês -havia sido lançado, no mesmo 70, por Elis Regina, no dueto (duelo?) bilíngue de "These Are the Songs", em disco da cantora.
Fez "I Don't Care", "I Don't Know What to Do with Myself" (71), "My Little Girl", "Where Is My Other Half" (72), "Over Again", "Do Your Thing, Behave Yourself" (73).
Os clássicos (muitos dos quais redescobertos na onda "W/Brasil" aberta por Ben Jor e Marisa Monte nos 90) se amontoavam: "Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)", "Você" (71), "Idade", "O Que Me Importa" (72), "Réu Confesso", "O Balanço", "Gostava Tanto de Você", "Música no Ar" (73)... O conjunto dos quatro primeiros LPs demonstra-se, até hoje, absolutamente irretocável
Aí veio a primeira reviravolta. Tim tornou-se membro da organização religiosa Racional Superior, rebatizando-se Tim Maia Racional e cantando músicas com títulos como "Imunização Racional", "Energia Racional", "Leia o Livro "Universo em Desencanto' ", "Contato com o Mundo Racional", "Rational Culture", "Guiné Bissau, Moçambique e Angola Racional".
O fanatismo temporário resultou nos dois volumes de "Tim Maia Racional" (de 74 e 75), seriíssimos candidatos aos mais avassaladores discos de toda sua obra. Proselitismo alucinado à parte, são (especialmente o volume 1) aulas poderosas de soul e funk, como nunca antes o Brasil havia presenciado. Mas, despido da capa "racional", ele nunca mais permitiu que os dois álbuns fossem reeditados.
Emergiu dessa fase um outro Tim Maia, aquele que seria modelo ao nascente movimento Black Rio, mais inclinado ao funk, ao som da Filadélfia e, em última instância, à discothèque de multidão.
Vieram "Pense Menos", "Feito para Dançar" (77), "Boogie Esperto" (79), "Acenda o Farol" , "Sossego", "A Fim de Voltar" (78, do álbum explicitamente denominado "Tim Maia Disco Club") -eram os "dancin' days", e Tim não fez vista grossa.
Uma última fase de peso ainda pode ser reconhecida nos primeiros anos 80, pós-discoteca, quando se reaproximou do funk carioca que tinha no colega Hyldon sua figura mais expressiva.
Em 82, reconduziu às paradas "Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapé)", sucesso de 75 de Hyldon.
Por essa época houve "Sol Brilhante" (surrupiada marotamente de "Genius of Love", do Tom Tom Club), "Ar Puro", "Do Leme ao Pontal (Tomo Guaraná, Suco de Caju, Goiabada para Sobremesa)" (82), "O Descobridor dos Sete Mares" (83), quase todas hits até hoje.
Aí a nódoa dos anos 80 começou a pesar. A dupla Robson Jorge & Lincoln Olivetti, egressa dos domínios de Tim, tornou-se bode expiatório de um dos estigmas da década -o da pasteurização. Tim, com eles, tornou-se emblema de pasteurização.
Mas Tim foi mais fundo ainda na diluição. Fez de Michael Sullivan e Paulo Massadas, também velhos conhecidos, os compositores de alguns de seus principais hits ao longo da década -"Me Dê Motivo" (83), "Leva" (85).
Tudo se tornou muito padronizado, açucarado -um baladeiro em sentido abregalhado dava lugar ao dono da voz, do soul e do funk tropicais. A década parecia perdida -mas não só para ele.
Sentindo o bombardeio das acusações de que houvesse virado brega, Tim pareceu querer voltar à sofisticação nos 90.
Passou a regravar bossa nova, muita bossa nova (até lançou CD em parceria com os históricos Os Cariocas, em 96), seus próprios clássicos, standards do soul norte-americano (em "What a Wonderful World", também de 96, seu único disco quase brilhante nos 90).
Aí já havia se dissociado em definitivo do poder industrial das gravadoras, e na prática isso redundou em indigência de produção (ou, quando não, em arranjos ainda pasteurizados), a mantê-lo patinando num mesmo e vicioso círculo.
No final, ele parecia mesmo desbaratinado. Transformou seu selo Vitória Régia em linha de produção em série, desovando dois, três, quatro discos a cada ano, num acesso de hiperprodutividade algo premonitório. Desordenado, parecia esquecer o próprio repertório, repetindo canções em discos sucessivos.
A voz -um de seus principais atributos, desnecessário reforçar- já dava sinais de definhar (embora "Só Você", o seu penúltimo CD, evidenciasse um giro de recomposição, incluindo até alguns funks), preço que ele pagava conscientemente para poder cometer os excessos que queria cometer.
É outra história. Comoventemente rebelde contra tudo que considerasse corrupto ou ilegítimo, Tim não conseguiu nos últimos anos fazer sua música se valer de tal qualidade de caráter.
Apesar de ter lançado sozinho a dupla "Tim Maia Racional", teve toda a fatia bem-cuidada, antológica mesmo de sua obra editada dentro de grandes gravadoras.
Era muito louco para conseguir ser genial por conta própria, e essa era sua grande contradição.
O legado, seja como for, é inestimável, tanto em termos musicais como de atitude (procure um outro colega que nos últimos anos tenha criticado seus colegas de profissão com seriedade e sem papas na língua; não encontrará). Seja por uns ou por outros, não há novos "tins" por aí, pelo menos por ora. E isso é uma tragédia.



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