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MARCELO COELHO
O que ficou faltando em "Carandiru"?
Gostei bastante de "Carandiru". O filme de Hector Babenco é forte sem ser apelativo.
Atores e encenação não poderiam
ser mais convincentes, sem eufemismo nem dramatização excessiva da realidade.
Sinto, ao mesmo tempo, que
não estou muito à vontade para
elogiar o filme, e o parágrafo acima saiu um pouco cerimonioso.
Tento explicar o que acontece.
Creio que as maiores qualidades de "Carandiru" sejam um
pouco difíceis de explicar ao passo
que seus problemas podem ser
apontados com mais rapidez.
Uma coisa que me chamou a
atenção, tanto no livro de Drauzio Varella como no filme, é o tom
de simpatia humana com que são
narradas as histórias de vários
dos personagens do presídio.
E aí está: "simpatia humana"
não é uma qualidade fácil de definir. De um lado, os personagens
não são tratados com condescendência, a distância, friamente. De
outro lado, o filme não se perde
em racionalizações "politicamente corretas", que seriam algo como um excesso de intimidade.
Evita-se a tentação de moralizar,
de dar aos presos motivos mais
eloquentes do que os que eles próprios possuem para justificar o fato de estarem ali.
Esse "grau certo" de proximidade com as histórias contadas pelos
presos, que transparece no livro
de Drauzio Varella e no filme de
Babenco, exige muita solidariedade e zero de demagogia. Na
maior parte do tempo, "Carandiru" mantém de forma admirável
esse equilíbrio. Por isso estranhei
bastante a cena inicial do filme,
que o "trailer" fez questão de ressaltar: a câmera, sobrevoando a
cidade de São Paulo como num
satélite, faz de repente um zoom,
um mergulho dramático, para
"cair de cabeça" na realidade do
presídio.
O melhor de "Carandiru" está,
a meu ver, no que ele tem de menos dramático, de menos dramatizado; daí também me parecerem de mau gosto (como sempre,
aliás) certas gesticulações estilizadas à la "Teatro da Vertigem" (silhuetas desesperadas contra a luz,
fumaça, corre-corres entre quatro
paredes) que irrompem durante a
filmagem do massacre.
Outra qualidade do filme, talvez oposta a essa "proximidade
distante" de que falei, está no fato
de toda a caracterização do ambiente, dos personagens, sem contar a própria cena do massacre,
ser ao mesmo tempo muito convincente, muito real, e não dar a
impressão de que se está querendo fazer algum tipo de virtuosismo em torno disso.
Nada mais comum, nos filmes
americanos, do que sentirmos
que o diretor está apontando o
dedo para cada cena, como se
perguntasse: "Já viu alguma coisa
mais real do que isso? Uma reconstituição de época tão perfeita? Um massacre tão massacrante?"
Diretor e atores de "Carandiru"
foram extremamente cuidadosos
ao não chamar demais a atenção
para o próprio virtuosismo técnico. Ao mesmo tempo, tudo funciona tão bem que...
Que "Carandiru" se tornou, aos
olhos de muita gente e aos meus
também, um filme insatisfatório.
É como se faltasse alguma coisa
nessa adaptação muito fiel do livro de Drauzio Varella.
"Estação Carandiru" é um livro-reportagem que traz para o
leitor a vida no presídio, o cotidiano e seus personagens de maneira bem-humorada, até amena. Seu grande poder dramático
está no fato de que, já quando o
livro está praticamente terminando, o massacre dos presos surge de modo inesperado, sem preparação, em toda a sua enormidade.
No cinema, esse efeito se perde.
Sabemos (até pelo hábito hollywoodiano) que o filme terá cenas
de grande impacto; sabemos que
não se trata de um filme "sobre o
presídio", como era o livro, mas
"sobre o massacre". O fato de o
massacre surgir no filme sem preparação, sem acúmulo de tensões,
sem presságios, dá uma certa sensação de vazio.
Criticaram "Cidade de Deus",
de Fernando Meirelles, porque a
realidade da violência e da favela
aparecia ali de forma muito isolada, sem contexto histórico e político. Achei a crítica equivocada,
pois toda a narrativa era feita por
um personagem da própria favela
e, em vez de explicações sociológicas, tínhamos a oportunidade de
ver as coisas "a partir de dentro".
Em "Carandiru", todavia, fica
faltando essa contextualização.
Pois a presença de um narrador
externo, de fora do presídio (o
médico), sugere que há outras
pessoas, outra realidade para
além daqueles muros: o governador Fleury, o secretário de Segurança, a polícia, a imprensa, o rádio, a opinião pública...
O narrador-médico, que era
"real" ao escrever o livro, torna-se
irreal no filme, à medida que o
vemos entrando e saindo do presídio sem nos fazer participar do
que pensa ou do que sabe. Inácio
Araújo observou com razão que o
personagem fica "pairando", com
um sorriso, pelo filme. No livro,
Drauzio Varella não era, não se
apresentava como um personagem. Visto pela câmera, apresentado na tela, o médico não é personagem e, ao mesmo tempo, como observador, parece quase cego
diante do que acontece.
Assim, quando explode a rebelião, é como se não soubéssemos
(embora tenhamos visto uma série de horrores da condição carcerária) por que, afinal, os presos ficaram tão agitados... E, justamente por não querer ser demagógico ou moralizante (ainda
mais numa época em que revoltas
num presídio têm significado diferente do que tinham há dez
anos), o filme parece omisso. É como se uma de suas maiores qualidades, a de não ser sensacionalista, se tornasse insuficiente diante
do que havia para contar.
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