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São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2003

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MARCELO COELHO

O que ficou faltando em "Carandiru"?

Gostei bastante de "Carandiru". O filme de Hector Babenco é forte sem ser apelativo. Atores e encenação não poderiam ser mais convincentes, sem eufemismo nem dramatização excessiva da realidade.
Sinto, ao mesmo tempo, que não estou muito à vontade para elogiar o filme, e o parágrafo acima saiu um pouco cerimonioso. Tento explicar o que acontece.
Creio que as maiores qualidades de "Carandiru" sejam um pouco difíceis de explicar ao passo que seus problemas podem ser apontados com mais rapidez.
Uma coisa que me chamou a atenção, tanto no livro de Drauzio Varella como no filme, é o tom de simpatia humana com que são narradas as histórias de vários dos personagens do presídio.
E aí está: "simpatia humana" não é uma qualidade fácil de definir. De um lado, os personagens não são tratados com condescendência, a distância, friamente. De outro lado, o filme não se perde em racionalizações "politicamente corretas", que seriam algo como um excesso de intimidade. Evita-se a tentação de moralizar, de dar aos presos motivos mais eloquentes do que os que eles próprios possuem para justificar o fato de estarem ali.
Esse "grau certo" de proximidade com as histórias contadas pelos presos, que transparece no livro de Drauzio Varella e no filme de Babenco, exige muita solidariedade e zero de demagogia. Na maior parte do tempo, "Carandiru" mantém de forma admirável esse equilíbrio. Por isso estranhei bastante a cena inicial do filme, que o "trailer" fez questão de ressaltar: a câmera, sobrevoando a cidade de São Paulo como num satélite, faz de repente um zoom, um mergulho dramático, para "cair de cabeça" na realidade do presídio.
O melhor de "Carandiru" está, a meu ver, no que ele tem de menos dramático, de menos dramatizado; daí também me parecerem de mau gosto (como sempre, aliás) certas gesticulações estilizadas à la "Teatro da Vertigem" (silhuetas desesperadas contra a luz, fumaça, corre-corres entre quatro paredes) que irrompem durante a filmagem do massacre.
Outra qualidade do filme, talvez oposta a essa "proximidade distante" de que falei, está no fato de toda a caracterização do ambiente, dos personagens, sem contar a própria cena do massacre, ser ao mesmo tempo muito convincente, muito real, e não dar a impressão de que se está querendo fazer algum tipo de virtuosismo em torno disso.
Nada mais comum, nos filmes americanos, do que sentirmos que o diretor está apontando o dedo para cada cena, como se perguntasse: "Já viu alguma coisa mais real do que isso? Uma reconstituição de época tão perfeita? Um massacre tão massacrante?"
Diretor e atores de "Carandiru" foram extremamente cuidadosos ao não chamar demais a atenção para o próprio virtuosismo técnico. Ao mesmo tempo, tudo funciona tão bem que...
Que "Carandiru" se tornou, aos olhos de muita gente e aos meus também, um filme insatisfatório. É como se faltasse alguma coisa nessa adaptação muito fiel do livro de Drauzio Varella.
"Estação Carandiru" é um livro-reportagem que traz para o leitor a vida no presídio, o cotidiano e seus personagens de maneira bem-humorada, até amena. Seu grande poder dramático está no fato de que, já quando o livro está praticamente terminando, o massacre dos presos surge de modo inesperado, sem preparação, em toda a sua enormidade.
No cinema, esse efeito se perde. Sabemos (até pelo hábito hollywoodiano) que o filme terá cenas de grande impacto; sabemos que não se trata de um filme "sobre o presídio", como era o livro, mas "sobre o massacre". O fato de o massacre surgir no filme sem preparação, sem acúmulo de tensões, sem presságios, dá uma certa sensação de vazio.
Criticaram "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, porque a realidade da violência e da favela aparecia ali de forma muito isolada, sem contexto histórico e político. Achei a crítica equivocada, pois toda a narrativa era feita por um personagem da própria favela e, em vez de explicações sociológicas, tínhamos a oportunidade de ver as coisas "a partir de dentro".
Em "Carandiru", todavia, fica faltando essa contextualização. Pois a presença de um narrador externo, de fora do presídio (o médico), sugere que há outras pessoas, outra realidade para além daqueles muros: o governador Fleury, o secretário de Segurança, a polícia, a imprensa, o rádio, a opinião pública...
O narrador-médico, que era "real" ao escrever o livro, torna-se irreal no filme, à medida que o vemos entrando e saindo do presídio sem nos fazer participar do que pensa ou do que sabe. Inácio Araújo observou com razão que o personagem fica "pairando", com um sorriso, pelo filme. No livro, Drauzio Varella não era, não se apresentava como um personagem. Visto pela câmera, apresentado na tela, o médico não é personagem e, ao mesmo tempo, como observador, parece quase cego diante do que acontece.
Assim, quando explode a rebelião, é como se não soubéssemos (embora tenhamos visto uma série de horrores da condição carcerária) por que, afinal, os presos ficaram tão agitados... E, justamente por não querer ser demagógico ou moralizante (ainda mais numa época em que revoltas num presídio têm significado diferente do que tinham há dez anos), o filme parece omisso. É como se uma de suas maiores qualidades, a de não ser sensacionalista, se tornasse insuficiente diante do que havia para contar.


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