São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

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LITERATURA

Um dos criadores do nouveau roman, escritor francês participa da Bienal carioca, que começa no próximo dia 12

Butor traz ao Rio o elogio da dor literária

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Michel Butor é um sadomasoquista. Com todo o respeito.
O autor francês gosta de sofrer com o que lê e tem prazer que os outros padeçam com seus textos. "Se um texto não nos é difícil, ele não nos dá oportunidade de crescer com esse embate. A dificuldade é necessária", diz o escritor.
Um dos principais convidados da Bienal do Livro do Rio, que começa no próximo dia 12, o escritor não é de se contentar com martírios ficcionais particulares.
Aos 79 anos, tem no currículo não apenas a criação de uma ou de algumas obras difíceis. Foi um dos artífices de toda uma corrente literária agrilhoada em sofrimentos literários, o nouveau roman.
O "novo romance", criado por ele e por autores como Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute e Claude Simon (Nobel de 1985), propunha uma espécie de "anti-romance" -rejeitava toda a sintaxe narrativa tradicional.
Lá se vai meio século. E Butor não só não faz mais "nouveau roman" como não escreve romance nenhum -e quase não os lê. Autor de mais de 60 livros (nenhum hoje em catálogo no Brasil), vem se dedicando só aos poemas e ensaios -"de preferência difíceis".
Na conversa a seguir, Butor fala sobre seu elogio do sofrimento literário, comenta a literatura contemporânea e conta que quer publicar até 2019.

 

Folha - Em uma entrevista que o sr. deu há mais de 30 anos para a hoje crítica Leyla Perrone Moisés, o sr. disse que sempre sofria ao escrever. O sr. também já disse que sofre como leitor. Por que o apreço pela dor literária?
Michel Butor -
A leitura é um prazer que deve ser difícil. Quase todos os prazeres demandam trabalho. Se um texto não nos é difícil, ele não nos dá oportunidade de crescer com esse embate. A dificuldade é necessária. Se não é difícil não é um prazer tão grande. É como nos esportes. Algo que não é um desafio não é interessante.

Folha - O sr. é considerado um autor difícil também. O sr. nunca se preocupou em ser mais acessível?
Butor -
Acho uma pena que seja considerado um autor tão difícil. De uma forma, porém, sou orgulhoso deste meu estigma. Como dizia, admiro escritores difíceis. Mas algo que tem de ser dito é que a realidade hoje é extremamente difícil. É muito custoso saber onde você está, em que época está, quem somos e assim por diante. Assim temos de assumir essas dificuldades na literatura.

Folha - Na mesma entrevista de 1967, o sr. falava que a literatura era uma forma poderosa de conhecer nossa realidade. O sr. acha que não temos uma literatura poderosa hoje por termos uma realidade que vai se tornando pior paulatinamente ou temos letras fortes e isso não está ligado à realidade?
Butor -
A literatura sempre tem a ver com a realidade. Quando a realidade é mais difícil, geralmente é o momento de fazer a grande literatura. São momentos em que a literatura é mais necessária porque é preciso mudar a realidade. Para mudar a realidade, é preciso mudar o modo como a vemos.
Tempos difíceis favorecem a boa literatura, mas tempos difíceis também dificultam a leitura. Se é mais difícil ler, temos de ler, e fazer, a literatura melhor. Se as circunstâncias levam a uma literatura difícil, então, bem, que assumamos essa dificuldade.

Folha - E temos hoje uma literatura forte sendo produzida?
Butor -
Tenho certeza de que existem muitos escritores fazendo coisas interessantes hoje. O difícil é conhecê-los. Como especialista em literatura, eu deveria saber quem são, mas eu sei que não sei. A culpa é do barulho da mídia.

Folha - E a literatura francesa, a convidada da próxima Bienal do Rio, merece ser celebrada hoje ou perdeu todo o seu poderio?
Butor -
A literatura francesa ainda é forte. Literatura não é coisa de dias ou anos. O corpus de literatura francesa do século 20 é magnífico. O do século 21 ainda não sabemos como será. Talvez vejamos no futuro que a literatura francesa se perdeu. Precisamos de tempo para isso. Alguns dos principais autores do século 19 só ficaram conhecidos no 20.

Folha - O sr. lê autores jovens?
Butor -
Leio alguns deles. E tenho certeza de que estou perdendo os melhores. Sigo só algumas regras. Procuro não ler os que vendem muito e os que ganham prêmios. Quase sempre são ruins.

Folha - Como o sr., que chegou a se engajar na defesa da língua francesa por meio do nouveau roman, na primeiras décadas pós-Segunda Guerra, avalia hoje a situação da língua francesa?
Butor -
O poder do francês é claramente menor do que há cem anos, quando era a língua da diplomacia. Há tempos o inglês tomou esse posto. Eu mesmo, quando morei nos EUA, me perguntei se não deveria escrever em inglês, para ser mais conhecido. Mas achei que não daria certo. Minha alma nasceu do lado de dentro da língua francesa.

Folha - O nouveau roman já faz parte, há tempos, das enciclopédias e dicionários. Como o sr. avalia os textos disponíveis sobre o movimento que o sr. ajudou a criar?
Butor -
Não costumo ler o que se escreve sobre mim ou sobre o nouveau roman. Se tenho de ler algo sobre isso, às vezes me interesso, às vezes acho que não está mal, às vezes vejo coisas completamente erradas. Espero que no futuro trabalhem esse tema com mais competência.

Folha - O sr. tem contato com alguém do nouveau roman?
Butor -
Não. Com Alain Robbe-Grillet não falo de modo nenhum. Não gosto dele. Nathalie Sarraute morreu, assim como Robert Pinget. Claude Simon mora longe de mim. Gosto dele, mas não tenho tido ocasiões para encontrá-lo.

Folha - O sr. tem poucos livros no Brasil. Dos muitos que fez qual gostaria de ver traduzido aqui?
Butor -
Escrevi muitos livros mesmo, talvez mais do que deveria, mas boa parte deles é muito difícil de traduzir. Escrevo em um francês muito francês, em parte porque era professor de literatura e, por isso, refletia muito sobre minha própria língua. Como acredito que tudo o que é mais interessante é difícil de ser traduzido, gostaria de ser mais traduzido.

Folha - O sr. lê os seus livros?
Butor -
Só quando preciso. Quando fazem novas edições, às vezes me pedem para fazer revisões. Também leio algo quando sou obrigado a falar, como professor de literatura que sou, sobre meus próprios livros. Mas em geral prefiro escrever outros livros.

Folha - A página francesa do site Amazon informa que o sr. tem um livro chamado "Les Fantômes de Laon" programado para ser editado em 2019. Isso está correto?
Butor -
É um equívoco. A internet está lotada deles. 2019? Espero que esteja vivo até lá e que esteja publicando. Só não espero publicar o livro que mencionaste porque este eu já publiquei [risos].


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