São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

BIOGRAFIA

Em livro, autor menciona ambigüidades do inventor do Readymade

Por meio de depoimentos, Tomkins investiga Duchamp

Caio Guatelli/Folha Imagem
"Roda de Bicicleta" (1913), obra do artista plástico Marcel Duchamp (1887-1968)


LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há muitos Duchamp. Para quem conhece o inventor do Readymade, uma biografia soa pura temeridade. Calvin Tomkins, que encontra Marcel Duchamp em 1959, procura rastrear esse personagem de mil facetas e o faz por meio de abundantes depoimentos, porém não coloca seu objeto de estudo em xeque.
O livro tem destino certo: os aficionados do gênero biográfico. Isso não impede Tomkins de lançar farpas contra os especialistas, notadamente aqueles que deitam Duchamp no divã -leia-se Arturo Schwarz, disseminador da tese de uma suposta paixão incestuosa por Suzanne, irmã dele.
Aproximar-se de Duchamp inspira cuidados quanto à veracidade de suas declarações. As respostas à entrevista com Pierre Cabanne, publicadas em 1967, um ano antes da morte do artista, provocaram indignação: estavam aquém da inteligência esperada de quem revolucionaria o destino da arte no século 20. Rebatendo o anticlímax, Thierry de Duve fornece pistas mais estimulantes.
Mas Tomkins não despreza a bomba-relógio alocada em 1915 na formulação do Readymade, "única idéia realmente importante saída de minha obra" diria Duchamp: uma vez que o museu pode expor uma pá de neve, ou seja, "um produto de massa, um objeto feito por máquina, sem qualquer pretensão estética", o circuito institucional mergulhou na "ausência de bom ou mau gosto". Portanto, na impossibilidade de definir o que é arte.
"Eco estético", para Duchamp, é da ordem da "fé religiosa" ou da "atração sexual". Tomkins dispensa teorias e sentencia que "aos 25 anos, Duchamp estava se tornando Duchamp". Este lhe faz jus ao vaticinar: "Milhares de artistas criam, apenas alguns são discutidos ou aceitos pelo espectador e uma quantidade muito menor é consagrada pela posteridade."
Quer aceitem ou não o bigode que colocou na reprodução da "Mona Lisa", Duchamp não cessa de inquietar seus interpretadores. É tão charlatão para a arte quanto o é Lacan para a psicanálise. Recentemente, teria surgido uma pesquisa negando que os readymades fossem "apropriações" do mundo cotidiano e provando que teriam sido "esculpidos". Será que o "bricoleur" não conseguiu negar o virtuosismo da mão?
Como "capturar" alguém afeito a tantas contradições, enfastiado a maior parte do tempo, que nega qualquer coisa que se diga sobre ele, deixa a pintura para dar aulas de francês, trabalhar como biblioteconomista e tornar-se campeão de xadrez, e ora aparece sob as vestes monásticas, ora circula em torno dos colecionadores Arensberg como um perfeito mundano extraído do salão de madame de Guermantes (Proust)?
Hábil, Tomkins alude as ambigüidades, sobretudo o envolvimento com o mercado e uma identidade meio feminina. O celibatário empedernido multiplica suas aventuras amorosas e "ménages à trois". Para um iconoclasta digno do termo, "exposer" (expor) equivale a "épouser" (esposar). Por isto, nem um, nem outro. (Única?) paixão de Duchamp, a escultora brasileira Maria Martins, é evocada na obra-prima "Étant-donnés". Um dia de 1946, recebe um desenho feito com sêmen, antecipando aqui os chamados "desregramentos" da arte contemporânea.
Engana-se quem pensar que inexiste, por trás desta biografia, uma intencionalidade crítica. Tomkins conhece bem a obra mais complexa de Duchamp, "O Grande Vidro", acompanhando, em linguagem clara, cada decisão tomada a seu respeito e até arrisca pontificar. Refere-se a "Traveller's Folding Item" (item dobrável de viagem), capa para máquina de escrever, como "a primeira escultura "maleável" conhecida na história da arte". O "Bicho" da Lygia Clark ficou a ver navios. Para Tomkins ainda, Duchamp antecipa em 50 anos a "máquina de pintar", atribuída a Jean Tinguely; a "Roda de Bicicleta" é a "primeira escultura móbile" e assim por diante. Mas certas passagens são incontestavelmente reveladoras.
Didático, este livro articula referências cruciais (Apollinaire, Breton, Picabia, Man Ray), o papel ativo do espectador, a determinação de deixar uma obra inconclusa, o nascimento de um Museu de Arte Moderna. Merece entrar na estante básica do estudante de arte. No mínimo, para lerem, na carta de 1915, deixando Paris para Nova York: "Tenho medo de acabar tendo de vender quadros, em outras palavras, de tornar-me um pintor de sociedade". Embustes, são os outros.


Lisette Lagnado é doutora em filosofia pela USP, crítica de arte e co-editora da revista eletrônica "Trópico"

Duchamp: uma biografia
   
Autor: Calvin Tomkins
Editora: Cosac Naify
Tradução: Maria Teresa de R. Costa

Quanto: R$ 59 (588 págs.)


Texto Anterior: Vitrine Brasileira
Próximo Texto: Vitrine Brasileira
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.