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LIVROS
BIOGRAFIA
Em livro, autor menciona ambigüidades do inventor do Readymade
Por meio de depoimentos, Tomkins investiga Duchamp
Caio Guatelli/Folha Imagem
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"Roda de Bicicleta" (1913), obra do artista plástico Marcel Duchamp (1887-1968) |
LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há muitos Duchamp. Para
quem conhece o inventor do
Readymade, uma biografia soa
pura temeridade. Calvin Tomkins, que encontra Marcel Duchamp em 1959, procura rastrear
esse personagem de mil facetas e
o faz por meio de abundantes depoimentos, porém não coloca seu
objeto de estudo em xeque.
O livro tem destino certo: os aficionados do gênero biográfico. Isso não impede Tomkins de lançar
farpas contra os especialistas, notadamente aqueles que deitam
Duchamp no divã -leia-se Arturo Schwarz, disseminador da tese
de uma suposta paixão incestuosa
por Suzanne, irmã dele.
Aproximar-se de Duchamp inspira cuidados quanto à veracidade de suas declarações. As respostas à entrevista com Pierre Cabanne, publicadas em 1967, um ano
antes da morte do artista, provocaram indignação: estavam
aquém da inteligência esperada
de quem revolucionaria o destino
da arte no século 20. Rebatendo o
anticlímax, Thierry de Duve fornece pistas mais estimulantes.
Mas Tomkins não despreza a
bomba-relógio alocada em 1915
na formulação do Readymade,
"única idéia realmente importante saída de minha obra" diria Duchamp: uma vez que o museu pode expor uma pá de neve, ou seja,
"um produto de massa, um objeto feito por máquina, sem qualquer pretensão estética", o circuito institucional mergulhou na
"ausência de bom ou mau gosto".
Portanto, na impossibilidade de
definir o que é arte.
"Eco estético", para Duchamp, é
da ordem da "fé religiosa" ou da
"atração sexual". Tomkins dispensa teorias e sentencia que "aos
25 anos, Duchamp estava se tornando Duchamp". Este lhe faz jus
ao vaticinar: "Milhares de artistas
criam, apenas alguns são discutidos ou aceitos pelo espectador e
uma quantidade muito menor é
consagrada pela posteridade."
Quer aceitem ou não o bigode
que colocou na reprodução da
"Mona Lisa", Duchamp não cessa
de inquietar seus interpretadores.
É tão charlatão para a arte quanto
o é Lacan para a psicanálise. Recentemente, teria surgido uma
pesquisa negando que os readymades fossem "apropriações" do
mundo cotidiano e provando que
teriam sido "esculpidos". Será
que o "bricoleur" não conseguiu
negar o virtuosismo da mão?
Como "capturar" alguém afeito
a tantas contradições, enfastiado
a maior parte do tempo, que nega
qualquer coisa que se diga sobre
ele, deixa a pintura para dar aulas
de francês, trabalhar como biblioteconomista e tornar-se campeão
de xadrez, e ora aparece sob as
vestes monásticas, ora circula em
torno dos colecionadores Arensberg como um perfeito mundano
extraído do salão de madame de
Guermantes (Proust)?
Hábil, Tomkins alude as ambigüidades, sobretudo o envolvimento com o mercado e uma
identidade meio feminina. O celibatário empedernido multiplica
suas aventuras amorosas e "ménages à trois". Para um iconoclasta digno do termo, "exposer" (expor) equivale a "épouser" (esposar). Por isto, nem um, nem outro. (Única?) paixão de Duchamp,
a escultora brasileira Maria Martins, é evocada na obra-prima
"Étant-donnés". Um dia de 1946,
recebe um desenho feito com sêmen, antecipando aqui os chamados "desregramentos" da arte
contemporânea.
Engana-se quem pensar que
inexiste, por trás desta biografia,
uma intencionalidade crítica.
Tomkins conhece bem a obra
mais complexa de Duchamp, "O
Grande Vidro", acompanhando,
em linguagem clara, cada decisão
tomada a seu respeito e até arrisca
pontificar. Refere-se a "Traveller's
Folding Item" (item dobrável de
viagem), capa para máquina de
escrever, como "a primeira escultura "maleável" conhecida na história da arte". O "Bicho" da Lygia
Clark ficou a ver navios. Para
Tomkins ainda, Duchamp antecipa em 50 anos a "máquina de pintar", atribuída a Jean Tinguely; a
"Roda de Bicicleta" é a "primeira
escultura móbile" e assim por
diante. Mas certas passagens são
incontestavelmente reveladoras.
Didático, este livro articula referências cruciais (Apollinaire, Breton, Picabia, Man Ray), o papel
ativo do espectador, a determinação de deixar uma obra inconclusa, o nascimento de um Museu de
Arte Moderna. Merece entrar na
estante básica do estudante de arte. No mínimo, para lerem, na
carta de 1915, deixando Paris para
Nova York: "Tenho medo de acabar tendo de vender quadros, em
outras palavras, de tornar-me um
pintor de sociedade". Embustes,
são os outros.
Lisette Lagnado é doutora em filosofia
pela USP, crítica de arte e co-editora da
revista eletrônica "Trópico"
Duchamp: uma biografia
Autor: Calvin Tomkins
Editora: Cosac Naify
Tradução: Maria Teresa de R. Costa
Quanto: R$ 59 (588 págs.)
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