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LIVROS
ARTIGO
Vencedor do Booker Prize usa o imponderável para criar drama pessoal
Em "Saturday", McEwan reflete o mundo pós-11 de Setembro
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Henry Perowne tinha tudo
para ser feliz. Henry é a personagem central de um romance
central: "Saturday" (sábado), de
Ian McEwan, 56, um dos mais brilhantes escritores ingleses do tempo presente. McEwan venceu o
Booker Prize com "Amsterdam",
em 1998. Atingiu os píncaros com
"Reparação", em 2001. Até chegar
"Saturday", em 2005.
Mas o que entendemos nós por
felicidade? Noção burguesa: uma
profissão, uma casa, uma família.
Henry Perowne é exemplo perfeito para preencher a vaga: neurocirurgião em Londres, com carreira
cotada e bem paga. Dois filhos artisticamente dotados. Uma mulher que ama. Uma mãe doente,
doente e demente, arrumada
num lar acético e distante. Perfeito. E algum vazio à mistura -um
vazio que por vezes se intromete
nas pausas do dia. Vazio: o preço
a pagar pela vida protegida e confortável que vamos construindo
entre os bárbaros.
Ian McEwan é primoroso na
descrição dessa doméstica felicidade. As conversas banais, informais, sentimentais. Cozinha, cozinhar, cozinhados. Convites,
convidados. Pais e filhos. Marido
e mulher. Os momentos de intimidade entre o par. E o desejo que
chega com as primeiras horas da
madrugada. Os corpos se abraçam, se amam, se apagam. Exaustos, finalmente exaustos. E foram
felizes para sempre, "the end".
Mas não: existem sinais. McEwan domina a narrativa como
poucos escritores vivos, e a tragédia vai deixando seus presságios.
A história dessa tragédia se insinua na primeira linha do livro.
Uma noite de insônia, como no
poema "Aubade", de Philip Larkin. Em "Aubade", o poeta se
confronta com a sua mortalidade.
O dia em que não irá ouvir nada,
pensar nada, sentir nada.
Henry Perowne não pensa na
morte. Pensa na vida. Então caminha pelo quarto e, contemplando
Londres pela janela, vê um avião
em chamas cruzando os céus.
Episódio perturbante. Primeiro,
porque a imagem é perturbante.
Mas, sobretudo, porque ela é familiarmente perturbante. Qualquer passageiro imagina, no momento do vôo, essa sinistra e tão
patética possibilidade: o momento em que nosso destino se escapa
das nossas mãos e se entrega a
uma margem de sorte que nos joga no abismo. Vivemos ainda na
ressaca do 11 de Setembro. Um
avião em chamas é a imagem de
nossa precária condição moderna. Tão seguros de nós. Tão inseguros dos outros.
O avião aterra em segurança, sabemos depois: problema técnico,
não mais. Mas o 11 de Setembro
não é alegoria casual. O livro se
ocupa das 24 horas de um sábado,
em Londres: 15 de fevereiro de
2003, quando milhões de manifestantes criticam a guerra iminente contra Saddam Hussein,
saindo em passeata pela capital.
Henry também sai; não para protestar, mas para encontro desportivo com um colega de ofício, depois de sua noite insone. Um passo fatal.
"Saturday" não é panfleto engajado para agradar às patrulhas
ideológicas de ambos os lados.
McEwan desloca nossa atenção
do universal para o particular. O
drama do mundo vale nada quando existe um drama pessoal que
tudo vale. Porque nesse dia, nesse
15 de fevereiro, quando os manifestantes cruzam as ruas de Londres contra Bush e seus falcões,
Henry Perowne cruza uma linha
sombria e se confronta com marginais, no sentido próprio do termo: gente que vive à margem da
vida de Henry.
A hora errada, o sítio errado. As
pessoas erradas, a atitude errada.
Um episódio trivial, como nas tragédias triviais: pequeno acidente
de automóvel numa ruela anônima com gente anônima. Henry
não tem culpa. Mas "culpa" não é
a palavra certa: a noção de culpa
implica um código moral partilhado e partilhável entre seres civilizados. Henry escapa ao primeiro confronto. Não escapa ao
segundo. E o segundo vai acabar
por visitá-lo.
Ian McEwan escreve sobre a vida de um homem. Mas a vida de
Henry ganha ressonâncias comuns: Henry representa nossa
confortável banalidade, nossas vidas plenas de privilégio e de dinheiro; e a forma como tudo o
que amamos pode ser ameaçado,
e até destruído, pela contingência
que surge sem aviso. Como numa
manhã de Nova York. Como em
várias manhãs de Nova York, de
Londres, de São Paulo.
E como no poema de Larkin,
sim. Em "Aubade", o poeta confronta o extremo da vida. Mas encontra nos primeiros raios do dia
o seu regresso à normalidade: trabalho para fazer, gente com quem
falar.
Porque essa é a ironia suprema:
nossas rotinas nos matam. Mas,
às vezes, nossas rotinas também
nos vingam e nos salvam no final.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
Saturday
Autor: Ian McEwan
Editora: Jonathan Cape
Quanto: 17,99 libras (R$ 87,25; 279
págs.)
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