São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

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ARTIGO

Vencedor do Booker Prize usa o imponderável para criar drama pessoal

Em "Saturday", McEwan reflete o mundo pós-11 de Setembro

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Henry Perowne tinha tudo para ser feliz. Henry é a personagem central de um romance central: "Saturday" (sábado), de Ian McEwan, 56, um dos mais brilhantes escritores ingleses do tempo presente. McEwan venceu o Booker Prize com "Amsterdam", em 1998. Atingiu os píncaros com "Reparação", em 2001. Até chegar "Saturday", em 2005.
Mas o que entendemos nós por felicidade? Noção burguesa: uma profissão, uma casa, uma família. Henry Perowne é exemplo perfeito para preencher a vaga: neurocirurgião em Londres, com carreira cotada e bem paga. Dois filhos artisticamente dotados. Uma mulher que ama. Uma mãe doente, doente e demente, arrumada num lar acético e distante. Perfeito. E algum vazio à mistura -um vazio que por vezes se intromete nas pausas do dia. Vazio: o preço a pagar pela vida protegida e confortável que vamos construindo entre os bárbaros.
Ian McEwan é primoroso na descrição dessa doméstica felicidade. As conversas banais, informais, sentimentais. Cozinha, cozinhar, cozinhados. Convites, convidados. Pais e filhos. Marido e mulher. Os momentos de intimidade entre o par. E o desejo que chega com as primeiras horas da madrugada. Os corpos se abraçam, se amam, se apagam. Exaustos, finalmente exaustos. E foram felizes para sempre, "the end".
Mas não: existem sinais. McEwan domina a narrativa como poucos escritores vivos, e a tragédia vai deixando seus presságios. A história dessa tragédia se insinua na primeira linha do livro. Uma noite de insônia, como no poema "Aubade", de Philip Larkin. Em "Aubade", o poeta se confronta com a sua mortalidade. O dia em que não irá ouvir nada, pensar nada, sentir nada.
Henry Perowne não pensa na morte. Pensa na vida. Então caminha pelo quarto e, contemplando Londres pela janela, vê um avião em chamas cruzando os céus. Episódio perturbante. Primeiro, porque a imagem é perturbante. Mas, sobretudo, porque ela é familiarmente perturbante. Qualquer passageiro imagina, no momento do vôo, essa sinistra e tão patética possibilidade: o momento em que nosso destino se escapa das nossas mãos e se entrega a uma margem de sorte que nos joga no abismo. Vivemos ainda na ressaca do 11 de Setembro. Um avião em chamas é a imagem de nossa precária condição moderna. Tão seguros de nós. Tão inseguros dos outros.
O avião aterra em segurança, sabemos depois: problema técnico, não mais. Mas o 11 de Setembro não é alegoria casual. O livro se ocupa das 24 horas de um sábado, em Londres: 15 de fevereiro de 2003, quando milhões de manifestantes criticam a guerra iminente contra Saddam Hussein, saindo em passeata pela capital. Henry também sai; não para protestar, mas para encontro desportivo com um colega de ofício, depois de sua noite insone. Um passo fatal.
"Saturday" não é panfleto engajado para agradar às patrulhas ideológicas de ambos os lados. McEwan desloca nossa atenção do universal para o particular. O drama do mundo vale nada quando existe um drama pessoal que tudo vale. Porque nesse dia, nesse 15 de fevereiro, quando os manifestantes cruzam as ruas de Londres contra Bush e seus falcões, Henry Perowne cruza uma linha sombria e se confronta com marginais, no sentido próprio do termo: gente que vive à margem da vida de Henry.
A hora errada, o sítio errado. As pessoas erradas, a atitude errada. Um episódio trivial, como nas tragédias triviais: pequeno acidente de automóvel numa ruela anônima com gente anônima. Henry não tem culpa. Mas "culpa" não é a palavra certa: a noção de culpa implica um código moral partilhado e partilhável entre seres civilizados. Henry escapa ao primeiro confronto. Não escapa ao segundo. E o segundo vai acabar por visitá-lo.
Ian McEwan escreve sobre a vida de um homem. Mas a vida de Henry ganha ressonâncias comuns: Henry representa nossa confortável banalidade, nossas vidas plenas de privilégio e de dinheiro; e a forma como tudo o que amamos pode ser ameaçado, e até destruído, pela contingência que surge sem aviso. Como numa manhã de Nova York. Como em várias manhãs de Nova York, de Londres, de São Paulo.
E como no poema de Larkin, sim. Em "Aubade", o poeta confronta o extremo da vida. Mas encontra nos primeiros raios do dia o seu regresso à normalidade: trabalho para fazer, gente com quem falar.
Porque essa é a ironia suprema: nossas rotinas nos matam. Mas, às vezes, nossas rotinas também nos vingam e nos salvam no final.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Saturday
Autor:
Ian McEwan
Editora: Jonathan Cape
Quanto: 17,99 libras (R$ 87,25; 279 págs.)


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