São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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FERREIRA GULLAR

Cidades inimigas

Houve , em certa época da história, duas cidades com características muito distintas: Xinyuan, cuja história milenar atravessava impérios e dinastias, e Newland, que praticamente não tinha história. Enquanto sobre esta o passado não pesava, Xinyuan, pelo contrário, mal conseguia seguir em frente tamanho era o peso das tradições e dos privilégios herdados pelos descendentes dos antigos imperadores.
Mas, diga-se a verdade, não foi apenas por essa diferença de idade e de origem que elas se tornaram inimigas, mesmo porque isso só se deu mais recentemente em razão das drásticas mudanças ocorridas em Xinyuan e que fizeram dela um exemplo perigoso para a sua vizinha.
Tudo começou quando um jovem professor de teologia, de nome Fuen Li, deu de pregar a substituição do antigo sistema de poder por um governo popular identificado com as necessidades da grande maioria do povo. As idéias de Fuen Li, propagadas inicialmente de boca em boca, depois em folhas volantes de papel de arroz, terminaram por incendiar a imaginação dos jovens de classe média e da intelectualidade, há muito inconformados com a brutal desigualdade que imperava em Xinyuan. A pregação de Li prometia a divisão igualitária das riquezas e a instituição de um regime em que os trabalhadores governariam a cidade. Com o apoio dos camponeses e dos operários, deflagrou-se a luta encarniçada que culminou com o fim das oligarquias. Iniciou-se, assim, uma nova etapa na história de Xinyuan: a troca do governo dos ricos pelo governo dos pobres. Foi a partir daí que a velha cidade se tornou uma ameaça para a sua jovem vizinha, onde os ricos sempre detiveram o poder.
Num primeiro momento, os governantes de Newland, assustados, enviaram tropas contra Xinyuan para impedir a instauração do novo regime, mas não tiveram êxito, pois, com a ajuda do povo, o Exército revolucionário derrotou os invasores. Essa vitória serviu para consolidar o poder dos novos governantes, que logo deram início à formação do Estado igualitário.
Diferentemente do que ocorria em Newland e em outras cidades, onde a economia se processava ao sabor das forças do mercado, na nova Xinyuan era o governo que a dirigia, mediante o estabelecimento de planos econômicos impostos aos diferentes setores produtivos. O Estado, além de dirigir a economia, estendeu seu controle sobre todos os setores da vida social.
Os ricos de Newland puseram as barbas de molho. Temendo que seus trabalhadores decidissem seguir o exemplo dos vizinhos, anteciparam-se em conceder-lhes uma série de direitos que até então lhes haviam negado. A situação se equilibrou, embora crescesse a cada dia a influência da revolução xinyuanense sobre os inconformistas de Newland. Enquanto isso, um lado e outro introduziam agentes secretos na cidade inimiga para fomentar o descontentamento com os respectivos regimes.
Não obstante, os anos se passaram sem que nenhum dos dois lados derrotasse o outro, o que não impediu que novos problemas viessem agravar-lhes o desempenho. No caso de Newland, as conquistas trabalhistas passaram a onerar as empresas a ponto de reduzir-lhes a capacidade de investir, o que resultou no aumento do nível de desemprego; por outro lado, a crescente longevidade dos aposentados, somada à queda do número de contribuintes, levou a previdência social à beira do colapso. Tudo isso contribuiu para imprimir à vida em Newland uma crescente ansiedade.
Esse não era, nem de longe, o caso de Xinyuan, onde o Estado regia tudo. Dado que, desde a vitória da revolução, o governo passara das mãos dos ricos às mãos dos trabalhadores, não havia por que fazer greves nem exigir direitos e, por essa razão, em Xinyuan, reinava a paz social. Todos os dias, os trabalhadores saíam de casa para o trabalho e a ela voltavam, sem de nada reclamar.
No entanto, a população foi crescendo, e a economia não. O desemprego avultou-se e um surdo descontentamento começou a perturbar o sono do governantes, que, sem mais recursos, não sabiam o que fazer. Foi então que brotou na cabeça de um deles uma solução inusitada: abrir a economia de Xinyuan aos investimentos dos empresários de New-land. Inicialmente repelida por contra-revolucionária, essa tese terminou sendo adotada pelo governo para espanto até dos empresários newlandeses, que, sem demora, a ela aderiram com entusiasmo.
Tanto esse entusiasmo quanto aquele espanto eram perfeitamente justificados, pois ninguém jamais imaginara que uma revolução feita para enterrar o capitalismo viesse a oferecer-lhe as condições ideais para seu florescimento: trabalhadores ativos que recebem salários muito baixos por jornadas de trabalho muito longas e que nada reivindicam. Essa foi a razão por que os empresários de Newland transferiram suas fábricas e empresas para Xinyuan, transformada inesperadamente em paraíso dos capitalistas. Quanto a Newland, cujo mercado de trabalho se estreitou drasticamente, se tornou o inferno dos trabalhadores, obrigados a abrirem mão dos direitos conquistados para não morrerem de fome.


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