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FERREIRA GULLAR
Cidades inimigas
Houve , em certa época da
história, duas cidades com
características muito distintas:
Xinyuan, cuja história milenar
atravessava impérios e dinastias,
e Newland, que praticamente não
tinha história. Enquanto sobre esta o passado não pesava, Xinyuan, pelo contrário, mal conseguia seguir em frente tamanho
era o peso das tradições e dos privilégios herdados pelos descendentes dos antigos imperadores.
Mas, diga-se a verdade, não foi
apenas por essa diferença de idade e de origem que elas se tornaram inimigas, mesmo porque isso
só se deu mais recentemente em
razão das drásticas mudanças
ocorridas em Xinyuan e que fizeram dela um exemplo perigoso
para a sua vizinha.
Tudo começou quando um jovem professor de teologia, de nome Fuen Li, deu de pregar a substituição do antigo sistema de poder por um governo popular identificado com as necessidades da
grande maioria do povo. As
idéias de Fuen Li, propagadas inicialmente de boca em boca, depois em folhas volantes de papel
de arroz, terminaram por incendiar a imaginação dos jovens de
classe média e da intelectualidade, há muito inconformados com
a brutal desigualdade que imperava em Xinyuan. A pregação de
Li prometia a divisão igualitária
das riquezas e a instituição de um
regime em que os trabalhadores
governariam a cidade. Com o
apoio dos camponeses e dos operários, deflagrou-se a luta encarniçada que culminou com o fim
das oligarquias. Iniciou-se, assim,
uma nova etapa na história de
Xinyuan: a troca do governo dos
ricos pelo governo dos pobres. Foi
a partir daí que a velha cidade se
tornou uma ameaça para a sua
jovem vizinha, onde os ricos sempre detiveram o poder.
Num primeiro momento, os governantes de Newland, assustados, enviaram tropas contra Xinyuan para impedir a instauração
do novo regime, mas não tiveram
êxito, pois, com a ajuda do povo,
o Exército revolucionário derrotou os invasores. Essa vitória serviu para consolidar o poder dos
novos governantes, que logo deram início à formação do Estado
igualitário.
Diferentemente do que ocorria
em Newland e em outras cidades,
onde a economia se processava ao
sabor das forças do mercado, na
nova Xinyuan era o governo que
a dirigia, mediante o estabelecimento de planos econômicos impostos aos diferentes setores produtivos. O Estado, além de dirigir
a economia, estendeu seu controle sobre todos os setores da vida
social.
Os ricos de Newland puseram as
barbas de molho. Temendo que
seus trabalhadores decidissem seguir o exemplo dos vizinhos, anteciparam-se em conceder-lhes
uma série de direitos que até então lhes haviam negado. A situação se equilibrou, embora crescesse a cada dia a influência da revolução xinyuanense sobre os inconformistas de Newland. Enquanto isso, um lado e outro introduziam agentes secretos na cidade inimiga para fomentar o
descontentamento com os respectivos regimes.
Não obstante, os anos se passaram sem que nenhum dos dois lados derrotasse o outro, o que não
impediu que novos problemas
viessem agravar-lhes o desempenho. No caso de Newland, as conquistas trabalhistas passaram a
onerar as empresas a ponto de reduzir-lhes a capacidade de investir, o que resultou no aumento do
nível de desemprego; por outro lado, a crescente longevidade dos
aposentados, somada à queda do
número de contribuintes, levou a
previdência social à beira do colapso. Tudo isso contribuiu para
imprimir à vida em Newland
uma crescente ansiedade.
Esse não era, nem de longe, o
caso de Xinyuan, onde o Estado
regia tudo. Dado que, desde a vitória da revolução, o governo passara das mãos dos ricos às mãos
dos trabalhadores, não havia por
que fazer greves nem exigir direitos e, por essa razão, em Xinyuan,
reinava a paz social. Todos os
dias, os trabalhadores saíam de
casa para o trabalho e a ela voltavam, sem de nada reclamar.
No entanto, a população foi
crescendo, e a economia não. O
desemprego avultou-se e um surdo descontentamento começou a
perturbar o sono do governantes,
que, sem mais recursos, não sabiam o que fazer. Foi então que
brotou na cabeça de um deles
uma solução inusitada: abrir a
economia de Xinyuan aos investimentos dos empresários de New-land. Inicialmente repelida por
contra-revolucionária, essa tese
terminou sendo adotada pelo governo para espanto até dos empresários newlandeses, que, sem
demora, a ela aderiram com entusiasmo.
Tanto esse entusiasmo quanto
aquele espanto eram perfeitamente justificados, pois ninguém
jamais imaginara que uma revolução feita para enterrar o capitalismo viesse a oferecer-lhe as condições ideais para seu florescimento: trabalhadores ativos que
recebem salários muito baixos
por jornadas de trabalho muito
longas e que nada reivindicam.
Essa foi a razão por que os empresários de Newland transferiram
suas fábricas e empresas para
Xinyuan, transformada inesperadamente em paraíso dos capitalistas. Quanto a Newland, cujo
mercado de trabalho se estreitou
drasticamente, se tornou o inferno dos trabalhadores, obrigados a
abrirem mão dos direitos conquistados para não morrerem de
fome.
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