São Paulo, segunda-feira, 16 de abril de 2007

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NELSON ASCHER

O museu e a vendeta

A DISTÂNCIA que separa Belgrado de Zagreb não é grande: cerca de 400km. Os sérvios, um povo que conquistara sua independência no século 19, livrando-se de meio milênio de ocupação otomana, e os croatas, que haviam sido parte da Monarquia Austro-Húngara até o final da Primeira Guerra, começaram a conviver num mesmo país logo após o conflito. Embora não fosse inicialmente este seu nome, quando se dissolveu nos anos 90, o país se chamava Iugoslávia, e Sérvia e Croácia eram seus dois principais estados ou nações.
Seria de se esperar que, quando a percorri em 1989, a estrada que ligava ambas as capitais acima fosse a melhor do país, ainda mais porque parte substancial do comércio nacional e mesmo internacional (entre Turquia e Alemanha) passava por ela. Não era esse, porém o caso e, além de pessimamente conservada, havia trechos nos quais a estrada parecia nunca ter sido devidamente concluída.
Deste modo ela sinalizava até mais do que simbolizava o caráter inconcluso de sete décadas de edificação de um estado nacional e apontava para sua possível dissolução, malgrado quanto sistemas tão diferentes como a monarquia de antes da Segunda Guerra e o comunismo que a seguiu se empenharam em mantê-lo unido. É fácil, hoje, ver que quem jogou gasolina nas chamas do esfacelamento latente (e, em breve, sangrento) foi uma Alemanha que iniciava seu próprio processo de reunificação.
No princípio dos anos 90 polemizei, através de alguns artigos, com um nacionalista croata. O que me preocupava, se o recordo bem, é que as forças centrípetas que encorajavam a independência de cada unidade da federação iugoslava não atingiriam seus objetivos individuais em paz. Enquanto, com a breve exceção romena, todos os países da Europa Centro-Oriental haviam se transformado pacificamente em estados mais ou menos democráticos, a Iugoslávia prometia, a quem quer que tivesse percorrido a estrada acima, uma longa guerra civil, que de fato eclodiu pouco depois.
Durante a polêmica, no entanto, não foram poucos os amigos meus que, interessados no Oriente Médio ou em outras partes aparentemente mais substantivas do planeta, acreditavam que eu estava perdendo tempo com minúcias bizantinas. E eu tentava, sem muito sucesso, explicar-lhes que era ali, nos Bálcãs, que a Primeira Guerra se iniciara, que lá se situava uma dessas falhas geológico-históricas que o desmantelamento de diversos impérios legara, como maldição incontornável, ao futuro.
Com a região envolvida numa conflagração que dominaria a década e custaria 250.000 vidas (muito mais, portanto, do que qualquer guerra do Oriente Médio, salvo a maior de todas, entre o Irã do aiatolás e o Iraque de Saddam Hussein, e isso, a uma hora de vôo de Roma ou Viena, numa Europa que se julgava pós-histórica), meus amigos acabaram se convencendo não apenas de que Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia etc. não eram nações ficcionais extraídas, digamos, das páginas de "O Senhor dos Anéis" como também de que o problema se tornara sério.
Ocorre que ninguém precisava ter viajado entre Belgrado e Zagreb para antever o que viria pela frente. A literatura dos eslavos do sul, das baladas medievais aos romances modernos, bem como alguns manuais históricos associados a uma visão realista da Segunda Guerra (aquela que sabe que os anos 1939-45 não se resumiram no bombardeio de Dresden e na bomba de Hiroxima) e da intratabilidade das tensões interétnicas e interconfessionais teriam ajudado os navegantes a se orientarem na zona cinzenta onde as águas da história se encontram com as do noticiário.
Os que são brasileiros há incontáveis gerações, vivendo num país cuja geografia quase sempre eclipsou a história, raramente entendem as preocupações dos brasileiros mais recentes, sobretudo daqueles oriundos de países pequenos cujos habitantes nunca puderam se dar ao luxo de ignorar o passado ou de fazer de conta que as vendetas milenares se resolveram.
Como os Estados Unidos, o Brasil é um país "forward looking", voltado para o futuro, relativamente amnésico diante da história, a própria e a alheia. Para muitos de nossos conterrâneos, o passado não passa de um museu tranqüilo, acessível e cheio de obras que, se bem que admiráveis, nem sequer influenciam mais a arte atual. O que foi, foi e nada tem a ver com o que será, algo totalmente em aberto. Pensando bem, seria melhor se fosse assim.


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