São Paulo, quinta, 16 de abril de 1998

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O paradoxo da aceleração do tempo

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Você tem tempo de ler este artigo? Se não tiver, paciência. Pelo menos assim você estará inadvertidamente ajudando a ilustrar o argumento que ele defende. Obrigado pela força. Mas se você tiver, só me resta pedir a sua paciência e compreensão. Espero que você não se arrependa, após a leitura, de ter perdido o seu tempo, e que o meu argumento encontre alguma ressonância em sua própria experiência.
Antes de atacar o paradoxo específico que proporei, vale indagar: o que é, afinal, um paradoxo? O termo "paradoxo', vítima de uma proliferação por vezes abusiva na linguagem comum, define basicamente duas classes principais de ocorrências.
A primeira delas pertence ao campo mais restrito da lógica. Um paradoxo pode ser definido como uma espécie de curto-circuito da argumentação racional. O modelo mais abrangente é aquele em que uma conclusão logicamente inaceitável foi derivada de um raciocínio aceitável a partir de premissas igualmente aceitáveis. A sensação que fica é a de se ter caído numa armadilha ou entrado num beco sem saída.
Um exemplo pitoresco de curto-circuito lógico desse tipo é o "paradoxo do sequestrador'. Um malfeitor rapta uma criança e avisa à mãe dela que só vai soltá-la se ela conseguir prever corretamente o que ele fará com ela. A mãe aceita o desafio e prevê que ele não vai libertá-la. O malfeitor não solta a criança e a mãe protesta, com razão, que ele não cumpriu a sua parte no trato. "Mas se eu soltá-la como você me pede', retruca o sequestrador, "a sua previsão sobre o que eu faria com ela terá sido falsa'. Quem tem razão?
A segunda classe de ocorrências propriamente paradoxais pertence ao domínio da vida prática. O paradoxo aqui nasce de uma relação particular entre as intenções e os resultados das nossas ações. Atribui-se o caráter de paradoxais às situações em que os resultados não-antecipados das ações negam frontalmente as intenções que as motivaram.
Exemplos desse tipo de paradoxo são o altruísmo amador que agrava uma situação que se pretendia melhorar ("o caminho do inferno está cheio de boas intenções') ou, ainda, todos os sonhos "ex ante' (como por exemplo o de uma sociedade racional baseada no planejamento central) que se tornam pesadelos "ex post' (o hospício econômico soviético). Não é que o feito apenas difere do pretendido; é que ele escarnece e inverte o sinal daquilo que sinceramente se pretendia fazer.
Para não perder mais tempo: o paradoxo da aceleração do tempo não é uma encrenca lógica, mas uma tendência que se manifesta na vida prática. Ele define uma contradição na nossa experiência objetiva e subjetiva do tempo.
De um ponto de vista objetivo, quem pode negar, os avanços são palpáveis: o progresso tecnológico, médico e econômico tem permitido vitórias espetaculares diante do eterno desafio de ganhar e poupar tempo. Ocorre que, do ponto de vista da nossa vivência subjetiva, o efeito dessas conquistas parece ser justamente o contrário do esperado.
Embora façamos as coisas que desejamos em cada vez menos tempo, sentimos cada vez mais a falta de tempo para fazer o que desejamos. O vírus contagiante da pressa nos agita, inquieta e alucina. A coceira de urgências mal resolvidas estilhaça a nossa atenção consciente, quebrando-a em mil pedaços. O superávit objetivo resulta em déficit subjetivo. Quanto mais economizamos tempo, mais carecemos dele.
Coloque o eixo do tempo objetivo em perspectiva. O que o renascentista Thomas More vislumbrava em sua "Utopia' como um ideal longínquo -a jornada de trabalho de seis horas diárias- é hoje um fato trivial. O "tempo livre' com que sonhava Marx engoliu o "tempo necessário'. De 1881 para cá, estima-se que o tempo total dedicado ao trabalho por um operário industrial típico europeu ao longo de sua vida reduziu-se de 154 mil para 65 mil horas. O padrão de renda, é evidente, moveu-se na direção oposta.
Ao mesmo tempo em que se trabalha menos, vive-se muito mais. A esperança média de vida ao nascer no mundo passou de cerca de 53 anos em 1960 para 67 anos atualmente. Isso significa que quem nasce hoje em dia vive em média 122 mil horas a mais do que alguém nascido quatro décadas atrás. Nos países ricos, a expectativa de vida beira a marca dos 80 anos e não está longe o dia em que os idosos com mais de 60 anos serão o principal grupo etário da população. Com um pouco de sorte, estaremos lá.
E enquanto tudo isso acontece, a inovação tecnológica dá um baile no tempo de realização das coisas. Do avião a jato à fibra ótica, passando pelo microondas, fax, internet e celular, tudo é feito em nome da presteza e economia de tempo. Quando Lincoln morreu, em 1865, a informação demorou 13 dias para chegar à Europa. Um aluno de faculdade munido de um PC realiza em segundos operações que consumiam dezenas de horas em supercomputadores de milhões de dólares nos anos 70. A transmissão planetária dos resultados é quase tão veloz quanto a bala que matou Lincoln.
A consequência lógica de todas essas maravilhas objetivas deveria ser uma sensação de alívio, uma atitude mais pródiga e generosa no uso do tempo -mais tempo para os amigos e relações pessoais densas de afeto e espiritualidade; mais tempo para ler os clássicos e estreantes; mais tempo para conviver com os filhos e os idosos; mais tempo para o exercício responsável da cidadania e irrefletido da boemia; mais tempo para artigos de imprensa, como este, que clamam em vão pelo seu precioso tempo...
Na prática, porém, por tudo o que sinto, ouço e observo ao meu redor, o efeito tem sido exatamente o oposto. A vivência subjetiva de pressa e escassez é o avesso dos nossos ganhos objetivos. Vivemos numa maré montante de ansiedade frente ao fluxo inexorável do tempo e tomados pela sensação opressiva de que estamos sempre perdendo alguma coisa importante que nos escapa. Corremos cada vez mais depressa rumo a lugar algum.
Quando olhamos para trás, a geração de nossos pais e avós, assim como as comunidades que "pararam no tempo', parecem-nos usufruir de um espaço interno de convivência e de uma largueza na dotação do tempo que são cada dia mais raros hoje em dia. Eles eram pobres, mas viviam como milionários perto de nós. Se "tempo é dinheiro', como queria Benjamin Franklin, parece que quanto mais ricos e hábeis ficamos na arte de ganhar tempo, mais avaros e mesquinhos nos tornamos no seu emprego. É a mendicância na opulência.
(Definir o paradoxo foi tudo que o tempo me permitiu na coluna de hoje. O desafio de explicá-lo e tentar domá-lo fica para outro dia. Se houver tempo, é claro).



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