|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O paradoxo da aceleração do tempo
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Você tem tempo de ler este
artigo? Se não tiver, paciência.
Pelo menos assim você estará
inadvertidamente ajudando a
ilustrar o argumento que ele
defende. Obrigado pela força.
Mas se você tiver, só me resta
pedir a sua paciência e compreensão. Espero que você não
se arrependa, após a leitura, de
ter perdido o seu tempo, e que
o meu argumento encontre alguma ressonância em sua própria experiência.
Antes de atacar o paradoxo
específico que proporei, vale
indagar: o que é, afinal, um
paradoxo? O termo "paradoxo', vítima de uma proliferação por vezes abusiva na linguagem comum, define basicamente duas classes principais
de ocorrências.
A primeira delas pertence ao
campo mais restrito da lógica.
Um paradoxo pode ser definido como uma espécie de curto-circuito da argumentação
racional. O modelo mais
abrangente é aquele em que
uma conclusão logicamente
inaceitável foi derivada de um
raciocínio aceitável a partir de
premissas igualmente aceitáveis. A sensação que fica é a de
se ter caído numa armadilha
ou entrado num beco sem saída.
Um exemplo pitoresco de
curto-circuito lógico desse tipo
é o "paradoxo do sequestrador'. Um malfeitor rapta uma
criança e avisa à mãe dela que
só vai soltá-la se ela conseguir
prever corretamente o que ele
fará com ela. A mãe aceita o
desafio e prevê que ele não vai
libertá-la. O malfeitor não solta a criança e a mãe protesta,
com razão, que ele não cumpriu a sua parte no trato. "Mas
se eu soltá-la como você me pede', retruca o sequestrador, "a
sua previsão sobre o que eu faria com ela terá sido falsa'.
Quem tem razão?
A segunda classe de ocorrências propriamente paradoxais
pertence ao domínio da vida
prática. O paradoxo aqui nasce de uma relação particular
entre as intenções e os resultados das nossas ações. Atribui-se o caráter de paradoxais
às situações em que os resultados não-antecipados das ações
negam frontalmente as intenções que as motivaram.
Exemplos desse tipo de paradoxo são o altruísmo amador
que agrava uma situação que
se pretendia melhorar ("o caminho do inferno está cheio de
boas intenções') ou, ainda, todos os sonhos "ex ante' (como
por exemplo o de uma sociedade racional baseada no planejamento central) que se tornam pesadelos "ex post' (o hospício econômico soviético).
Não é que o feito apenas difere
do pretendido; é que ele escarnece e inverte o sinal daquilo
que sinceramente se pretendia
fazer.
Para não perder mais tempo:
o paradoxo da aceleração do
tempo não é uma encrenca lógica, mas uma tendência que
se manifesta na vida prática.
Ele define uma contradição na
nossa experiência objetiva e
subjetiva do tempo.
De um ponto de vista objetivo, quem pode negar, os avanços são palpáveis: o progresso
tecnológico, médico e econômico tem permitido vitórias
espetaculares diante do eterno
desafio de ganhar e poupar
tempo. Ocorre que, do ponto
de vista da nossa vivência subjetiva, o efeito dessas conquistas parece ser justamente o
contrário do esperado.
Embora façamos as coisas
que desejamos em cada vez
menos tempo, sentimos cada
vez mais a falta de tempo para
fazer o que desejamos. O vírus
contagiante da pressa nos agita, inquieta e alucina. A coceira de urgências mal resolvidas
estilhaça a nossa atenção
consciente, quebrando-a em
mil pedaços. O superávit objetivo resulta em déficit subjetivo. Quanto mais economizamos tempo, mais carecemos
dele.
Coloque o eixo do tempo objetivo em perspectiva. O que o
renascentista Thomas More
vislumbrava em sua "Utopia'
como um ideal longínquo -a
jornada de trabalho de seis horas diárias- é hoje um fato
trivial. O "tempo livre' com que
sonhava Marx engoliu o "tempo necessário'. De 1881 para cá,
estima-se que o tempo total
dedicado ao trabalho por um
operário industrial típico europeu ao longo de sua vida reduziu-se de 154 mil para 65 mil
horas. O padrão de renda, é
evidente, moveu-se na direção
oposta.
Ao mesmo tempo em que se
trabalha menos, vive-se muito
mais. A esperança média de vida ao nascer no mundo passou
de cerca de 53 anos em 1960
para 67 anos atualmente. Isso
significa que quem nasce hoje
em dia vive em média 122 mil
horas a mais do que alguém
nascido quatro décadas atrás.
Nos países ricos, a expectativa
de vida beira a marca dos 80
anos e não está longe o dia em
que os idosos com mais de 60
anos serão o principal grupo
etário da população. Com um
pouco de sorte, estaremos lá.
E enquanto tudo isso acontece, a inovação tecnológica dá
um baile no tempo de realização das coisas. Do avião a jato
à fibra ótica, passando pelo
microondas, fax, internet e celular, tudo é feito em nome da
presteza e economia de tempo.
Quando Lincoln morreu, em
1865, a informação demorou
13 dias para chegar à Europa.
Um aluno de faculdade munido de um PC realiza em segundos operações que consumiam
dezenas de horas em supercomputadores de milhões de
dólares nos anos 70. A transmissão planetária dos resultados é quase tão veloz quanto a
bala que matou Lincoln.
A consequência lógica de todas essas maravilhas objetivas
deveria ser uma sensação de
alívio, uma atitude mais pródiga e generosa no uso do tempo -mais tempo para os amigos e relações pessoais densas
de afeto e espiritualidade;
mais tempo para ler os clássicos e estreantes; mais tempo
para conviver com os filhos e
os idosos; mais tempo para o
exercício responsável da cidadania e irrefletido da boemia;
mais tempo para artigos de
imprensa, como este, que clamam em vão pelo seu precioso
tempo...
Na prática, porém, por tudo
o que sinto, ouço e observo ao
meu redor, o efeito tem sido
exatamente o oposto. A vivência subjetiva de pressa e escassez é o avesso dos nossos ganhos objetivos. Vivemos numa
maré montante de ansiedade
frente ao fluxo inexorável do
tempo e tomados pela sensação opressiva de que estamos
sempre perdendo alguma coisa
importante que nos escapa.
Corremos cada vez mais depressa rumo a lugar algum.
Quando olhamos para trás, a
geração de nossos pais e avós,
assim como as comunidades
que "pararam no tempo', parecem-nos usufruir de um espaço
interno de convivência e de
uma largueza na dotação do
tempo que são cada dia mais
raros hoje em dia. Eles eram
pobres, mas viviam como milionários perto de nós. Se "tempo é dinheiro', como queria
Benjamin Franklin, parece que
quanto mais ricos e hábeis ficamos na arte de ganhar tempo, mais avaros e mesquinhos
nos tornamos no seu emprego.
É a mendicância na opulência.
(Definir o paradoxo foi tudo
que o tempo me permitiu na
coluna de hoje. O desafio de
explicá-lo e tentar domá-lo fica para outro dia. Se houver
tempo, é claro).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|