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MÚSICA
Aos 59 anos, cantor baiano dedica CD e DVD diferentes à obra do ícone do reggae, gravados em parte na Jamaica
Gil grava Marley e busca o "acima do muro"
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Após anos de adiamento, Gilberto Gil concretiza o plano de dedicar um disco (quase todo em inglês) ao repertório do jamaicano
Bob Marley. "Kaya n'Gan Daya"
chega às vésperas de Gil completar 60 anos, mas ele diz que não o
vê como uma celebração da data.
"Já vinha com esse projeto havia
algum tempo, a data é só coincidência. Nunca gostei de festa minha, sempre foi constrangedor
para mim. É como estar numa roda de samba e alguém dar uma
umbigada para você entrar na roda, ficar no centro", diz.
Afirma, também, que a chegada
dos 60 não o afeta: "Estou achando que a velhice está ótima. As décadas não se manifestam em
mim, são só uma convenção automática, de efeito psicológico".
Continua: "Aos 60, tenho menos medo de morrer. O jovem
tem certeza de tudo, é curioso, interrogativo, vê a morte como acidental. Hoje, na minha idade, sou
mais entregue. Já passei da metade, já estou ladeira abaixo".
À parte temas assim, mostra-se
mais entusiasmado que de costume, seja na entrevista ou durante
o evento de lançamento do DVD
correspondente ao disco (com
versão ao vivo e um documentário sobre a produção no estúdio).
"Tem a ver com a extraordinária paixão que tenho por Marley",
explica. "Tenho de ser menos blasé e afastado, porque é um projeto
amplo. Há o significado de Marley para a música do mundo, para
a Jamaica e para o Brasil, porque o
reggae foi adotado aqui quase como gênero local. Marley foi importante para processos libertários políticos e existenciais, com a
questão da maconha, do vegetarianismo, o novo tribalismo que
investia na recuperação da tradição indígena", enumera.
Gil canta o discurso político
agudo de Marley, mas diz que não
veste sua fantasia: "É uma visão
antropológica minha, não estou
necessariamente usando o hábito
do monastério rastafári. A religiosidade dele é o lado que menos
me entusiasma, porque me lembra um pouco do crescimento das
igrejas evangélicas no Brasil".
Comenta, então, o caso de estar
fazendo, pela primeira vez, um
trabalho todo focado num determinado movimento de raiz negra:
"Nunca fiz porque não acredito
na minha eficácia. Não sou um
guerreiro, sou um diplomata. Inclusive de todas as causas negras".
"Kaya n'Gan Daya" foi gravado
em parte no quintal jamaicano do
reggae, com visitas do grupo vocal
feminino I-Three (da mulher de
Bob, Rita Marley) e da dupla Sly
& Robbie (além dos brasileiros
Paralamas do Sucesso e Skank).
Gil lamenta e justifica a falta dos
Wailers, banda original de Marley: "É a grande ausência do CD.
Eles moram em Miami, e há dificuldades deles com a família Marley, problemas de espólio".
O CD não é, segundo Gil, de releituras, no sentido de conferir a
canções conhecidas novas roupagens. "Usei aquele sentimento juvenil de ouvir algo no rádio e querer reencarnar, imitar, como queria fazer com João Gilberto quando adolescente. Já fiz isso um pouco com Luiz Gonzaga, é como se
minha voz fosse um eco."
Estaria ele escondendo sua
identidade por trás das outras?
"Não necessariamente oculto minha identidade, mas dou a ela um
descanso que me propicia um
exercício da outra faceta. E Gil está lá, não está se escondendo debaixo da sombra do Marley. Tenho vontade de fazer isso com o
samba, pode ser meu próximo
CD, fechando uma trilogia."
Identidade bifurcada ele exibe
em "Table Tennis Table", única
composição sua no álbum, em
que brinca com uma conversa entre "eu e eu", evocando também a
anterior "Você x Você" (93). "É o
"I and I" do dialeto rasta, que significa "nós". Não sei por que converso comigo mesmo nessas canções, acho que é a coisa das dualidades -bem e mal, paz e guerra,
compreensão e intolerância."
Estaria tudo isso embutido no
"eu x eu" de Gil? "É também a tentativa de superar as dicotomias
pelo entendimento dos complementares, de não estar mais em
cima do muro, mas acima do muro, de não ter medo de cair para o
lado de lá ou de cá. Parei de buscar
isso, de ter essa pretensão, apesar
de que a busca não pára nunca",
confessa, paradoxal.
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