São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 2006

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TEATRO/CRÍTICA

"Leitor por Horas" é imperdível

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

O pai da moça cega avisa ao leitor contratado: a leitura deverá ser translúcida, pois a filha desenvolveu uma quase "clariaudição" para descobrir subtextos indevidos na interpretação. No blecaute que faz a transição para a cena seguinte, o público já experimenta a sensação de ouvir um texto no escuro, criando assim ao mesmo tempo uma identificação e um distanciamento crítico.
Bastaria esse achado para tornar "Leitor por Horas" imperdível. Mas a montagem vai bem além de uma boa idéia inicial. Primeiro, há a grande experiência e sensibilidade do autor José Sanchis Sinistierra, que, tendo adaptado por 30 anos textos literários para o palco, sabe escolher trechos que se multiplicam no contexto da peça, como espelhos se refletindo.
Como uma cega ouve "O Coração das Trevas" de Joseph Conrad? A leitura de "Madame Bovary" pode induzi-la a fantasiar eroticamente sua realidade opaca? Assim, temos direito não só ao universo das citações, como o de sua interpretação, e a realidade vai se estilhaçando em vários pontos de vista excludentes.
Com essa sofisticação à altura de Pirandello, o espetáculo poderia ficar restrito à elite intelectual de um público-leitor. Mas a diretora Chistiane Jatahy sabe tirar partido da metalinguagem do espetáculo com elegância, propondo um jogo aberto com a platéia.
Nesse trapézio sem redes, os atores devem ser irrepreensíveis, e são. Sebastião Vasconcellos faz o pai, um capitão de longo curso dos mares literários, não raro imerso em si mesmo, mas sempre afável, mesmo quando é cruel.
Com sua vaidade confortavelmente dissimulada em seu belo timbre de voz, Luciano Chirolli cinzela subtextos com vigor e sutileza. Ana Beatriz Nogueira, construindo sua cegueira com o essencial, faz a narrativa girar em torno do "centro oculto do ciclone sensual", como avisa a citação do "Leopardo" de Lampedusa.
Nesse xadrez borgiano, de regras que mudam a cada rodada, a cega instiga com a ironia cruel dos críticos o leitor, que se defende tornando-se seu diretor, até que o literário inunde de implausível a opacidade do cotidiano. Com uma profundidade de se estabelece camada por camada, delicado e brilhante, "Leitor por Horas" é teatro folhado a ouro.


Leitor por Horas
     Quando: sáb, às 20h; dom., às 18h; até 25/6
Onde: Sesc Paulista (av. Paulista, 119, tel. 0/xx/11/3179-3700)
Quanto: R$ 15


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