São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 2006

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FERNANDO BONASSI

Fome de Quem

Há sim uma greve de fome. Não é um fenômeno político, espetáculo dramático ou "reality show" recente. Trata-se de um programa antigo, com algo mais ou menos como uns 500 e tantos anos mal vividos entre exploração, predação e acordos passageiros. São cinco séculos e mais uns anos de descobrimentos, desentendimentos e racionamentos que eu vou te contar, capazes de deixar tontos os grevistas mais indignados entre os pelados esfomeados!
É preciso deixar claro que a greve de fome de que trato é uma greve obscura e involuntária, promovida por uma minoria ordinária, voluntariosa e atrevida, contra essa maioria democrática e emagrecida que a acata com uma espécie de estoicismo, onanismo ou masoquismo que dá o que pensar sobre não pensar... Pode ser porque numa greve de fome há sempre certa atrapalhação do pensamento, já que o estômago em lamento não se enche com promessas históricas...
"De ilusão também se vive", insistem em afirmar! Até certo ponto, é preciso determinar, já que os sacos de feijão vazios seguem sendo levados pelos ventos da concentração de renda e da recessão, seguidos de morte por inanição.
Enterram-se faces contra faces encovadas em covas coletivas sem jamais terem se reconhecido como ferrados iletrados!
O ideal é que estudassem mais, pois o benefício da igualdade se aprende é na escola. Problema é que a escola é pouco freqüentada, uma vez que as merendas foram desviadas para os cavalos de raça com os quais tais aprendizes haverão de ser caçados nas esquinas em manifestações de solidariedade, numa gramática ou matemática cujo resultado se decora é na porrada mesmo.
Deselegantes e deseducados, não compreendem que se vestem, vivem e comem mal, de menos ou apenas porcamente, já que aceitam placidamente essa lavagem como alimento e esses chiqueiros como moradia.
O caso é que o dia a dia de sujeiras dessa elite de tratadores também não lhes fornece exemplos regeneradores... Enquanto esperam por algo que não vem de graça, por exemplo, entregam-se às desgraças gastronômicas desses sanduíches baratos e gordurosos, feitos com carnes anônimas desfiadas, sucos aguados e sonhos melados esmolados nas esquinas e atropelados por motoboys terceirizados que teimam em levar e trazer tudo para o mesmo lugar.
São burros de carga carentes que não lêem livros decentes para entenderem a própria estupidez, sem computadores para calcularem sua pequenez ou mesmo paixão para se distraírem no fim do mês, já que há carnês demais para pensarem desejos melhores que dívidas.
Permanecem nessa dúvida, ignorantes e engarrafados, com a maior porção dos seus quereres esmagados em meio à gravidade da situação cuja duração, ou manutenção, até parece obra da eternidade!
Há vaidade naqueles que decidem não comer, pois para os outros obrigados a passar essa fome fica a impressão de que escolhem muito pouco... E até quando julgam ter escolhido o melhor que têm... Bem, fica esse gosto amargo da demora em se fazer acontecer algo em que se acredite; o que vai minando a paciência, para não dizer a esperança, que anda mesmo meio anêmica e vagando à esmo, à propósito de tanta fome endêmica, consentida ou não.
É preciso ter consciência, mas não demais, porque há também uma greve de inteligência, já que a eficiência é quem se diz responsável por essas coisas. Convém lembrar que a eficiência é uma ciência de acumulação. De forma que uns têm mais é congestão, enquanto os outros só a "imaginação" para se consolar, ou satisfazer.
Quanto à imaginação, não imaginam grande coisa, já que todas as grandes coisas que imaginaram transformaram-se em pesadelos, por mais que insistam que na próxima eleição, quando o inverno chegar ou depois que o carnaval passar seja a sua vez, supondo que a bagunça passaria, mas ficaria ao menos alguma alegria para tocar no rádio...
Acontece que os sambas das notícias, por incríveis que pareçam, são lesivos, repetitivos ou simplesmente tristes, por mais que espanquemos os surdos, os cegos ou as bichas para nos divertirmos com os próprios sentimentos, preconceitos e sofrimentos.
Essas coisas, por mais obscenas que sejam de se apontar, são morais, sim senhores, pois quando os senhores fazem greve de fome, querem é comer alguma coisa proibida, reprimida ou pervertida mesmo.
Aliás, escravos não fazem greve! Nem poderiam, já que estes capitães-do-mato se organizam é para crescer e gozar rápido, desconhecendo o fato de que há prazer em dar na proporção do que se pode receber.
Assim, essa greve de fome, que é sim grave, contagiosa e agônica tornou-se doença crônica, numa mortandade estatística tão certa que assombra até mesmo os sociólogos comunistas que erram culpados em seus herdados apartamentos de cobertura!
Haja fartura! E polícia...


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