São Paulo, quarta-feira, 16 de maio de 2007

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MARCELO COELHO

Um catolicismo bem divertido

A melhor parte de um romance policial é o começo, quando ainda não houve o assassinato

"NO INSTANTE em que abriu a porta da sala, viu somente uma coisa: viu o que não estava ali." Paradoxos e surpresas desse tipo são a marca do estilo narrativo de G. K. Chesterton (1874-1936) e, depois de um papa tão previsível como Bento 16, sem dúvida vale a pena conhecer as aventuras de um padre bem mais inesperado, o padre Brown.
O primeiro livro de contos protagonizados por esse clérigo-detetive acaba de ser publicado, em boa tradução, pela editora Sétimo Selo.
Trata-se de "A Inocência do Padre Brown", coleção de 12 narrativas originalmente editada em 1911.
Complementa o volume um curto ensaio de Chesterton, "Como Escrever Histórias de Detetive".
Li muitas histórias policiais na adolescência e acabei me cansando do gênero. Mas ainda mantenho um gosto que era bastante forte naquela época: não pelo mistério propriamente dito, nem pela identidade do criminoso, mas pelos detalhes que nada têm a ver com a intriga. Para mim, a melhor parte de um romance policial é o começo da história, quando ainda não ocorreu assassinato nenhum.
É nessas páginas iniciais que um carro cinza estaciona perto de um cais; que os amigos de um duque partem para uma caça à raposa; que um cozinheiro prepara uma torta de mirtilos; ou que o detetive está no jardim de sua casa, cultivando girassóis.
A charada a ser resolvida em geral me aborrece um pouco, e os contos de Padre Brown tendem a abusar bastante da credulidade do leitor.
Bom católico, Chesterton sempre defendeu que a razão não contradiz o dogma religioso; depende deste, ao contrário, para fazer valer os seus direitos.
Desse modo, o padre Brown é o único a perceber o óbvio e atinar com a chave do enigma. Como diz o autor no ensaio final, um bom conto policial exige uma solução simples, ainda que impensada.
Em "A Inocência do Padre Brown", um mesmo mecanismo lógico se repete: a troca de identidades. O cadáver encontrado não é o da pessoa assassinada, o empregado é o patrão, o policial é um criminoso, e assim por diante.
A própria personagem do detetive já traz em si esse recurso de prestidigitação: é um padre, afinal, quem possui mais racionalidade e poder dedutivo, uma vez que está preparado para o maravilhoso, o incompreensível, o que foge às regras usuais do pensamento.
A obra apologética de Chesterton, em especial o longo e brilhante ensaio "Ortodoxia", ainda está para ter uma boa edição no Brasil. O problema é que, por mais vigorosa que seja sua defesa da fé tradicional, o gosto de Chesterton pelo paradoxo torna o catolicismo ainda mais inacreditável e fabuloso do que pensávamos antes de ler seus textos.
Nisso, evidentemente, está a graça de toda a coisa; um livro em que predominasse a rigidez doutrinária e a santimônia teria tudo para ser chato, e este é sem dúvida o maior pecado para um autor como Chesterton. Mas eu estava falando dos detalhes inúteis que antecedem o crime a ser desvendado, e nesse aspecto a leitura de Chesterton pode encantar mesmo quem não gosta de histórias policiais. Um jantar elegantíssimo transcorre num clube de aristocratas. Vários membros do clube são descritos, sem que a descrição sirva para nada: nem mesmo estarão entre os suspeitos do crime.
Veja-se o caso de Mr. Audley, o rico homem público que era presidente do clube. "Nunca tinha feito nada -nem sequer nada errado." Quanto ao vice-presidente, o duque de Chester, "visto de trás", parecia ser o homem de que necessitava o Império Britânico. "Visto de frente, parecia um solteirão auto-indulgente e bonachão com apartamentos no Albany: o que ele de fato era."
A maior surpresa, como se vê, está na circunstância de que as coisas sejam mesmo como são. No jantar, serve-se um esplêndido (?) pudim de peixe. Os convivas "aproximaram-se dele tão gravemente como se cada polegada do pudim custasse tanto quanto o garfo de prata com que era comido. E custava, pelo que sei".
Perto dessas pequenas surpresas, a surpresa final do conto perde bastante em importância. Tento tirar daí uma conclusão religiosa, para meu uso pessoal. O desfecho da minha história -a vida ou a morte eternas- tende a ser pouco atraente. Melhor pensar nos mistérios inexplicáveis -um cheiro de café, uma virada no tempo, o contato de uma lã entre os dedos- que acontecem todo dia.


coelhofsp@uol.com.br

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