|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Um catolicismo bem divertido
A melhor parte de um romance policial é o começo, quando ainda não houve o assassinato
"NO INSTANTE em que
abriu a porta da sala, viu
somente uma coisa: viu
o que não estava ali." Paradoxos e
surpresas desse tipo são a marca do
estilo narrativo de G. K. Chesterton
(1874-1936) e, depois de um papa
tão previsível como Bento 16, sem
dúvida vale a pena conhecer as aventuras de um padre bem mais inesperado, o padre Brown.
O primeiro livro de contos protagonizados por esse clérigo-detetive
acaba de ser publicado, em boa tradução, pela editora Sétimo Selo.
Trata-se de "A Inocência do Padre
Brown", coleção de 12 narrativas
originalmente editada em 1911.
Complementa o volume um curto
ensaio de Chesterton, "Como Escrever Histórias de Detetive".
Li muitas histórias policiais na
adolescência e acabei me cansando
do gênero. Mas ainda mantenho um
gosto que era bastante forte naquela
época: não pelo mistério propriamente dito, nem pela identidade do
criminoso, mas pelos detalhes que
nada têm a ver com a intriga. Para
mim, a melhor parte de um romance
policial é o começo da história,
quando ainda não ocorreu assassinato nenhum.
É nessas páginas iniciais que um
carro cinza estaciona perto de um
cais; que os amigos de um duque
partem para uma caça à raposa; que
um cozinheiro prepara uma torta de
mirtilos; ou que o detetive está no
jardim de sua casa, cultivando girassóis.
A charada a ser resolvida em geral
me aborrece um pouco, e os contos
de Padre Brown tendem a abusar
bastante da credulidade do leitor.
Bom católico, Chesterton sempre
defendeu que a razão não contradiz
o dogma religioso; depende deste, ao
contrário, para fazer valer os seus direitos.
Desse modo, o padre Brown é o
único a perceber o óbvio e atinar
com a chave do enigma. Como diz o
autor no ensaio final, um bom conto
policial exige uma solução simples,
ainda que impensada.
Em "A Inocência do Padre
Brown", um mesmo mecanismo lógico se repete: a troca de identidades. O cadáver encontrado não é o da
pessoa assassinada, o empregado é o
patrão, o policial é um criminoso, e
assim por diante.
A própria personagem do detetive
já traz em si esse recurso de prestidigitação: é um padre, afinal, quem
possui mais racionalidade e poder
dedutivo, uma vez que está preparado para o maravilhoso, o incompreensível, o que foge às regras
usuais do pensamento.
A obra apologética de Chesterton,
em especial o longo e brilhante ensaio "Ortodoxia", ainda está para ter
uma boa edição no Brasil. O problema é que, por mais vigorosa que seja
sua defesa da fé tradicional, o gosto
de Chesterton pelo paradoxo torna
o catolicismo ainda mais inacreditável e fabuloso do que pensávamos
antes de ler seus textos.
Nisso, evidentemente, está a graça
de toda a coisa; um livro em que predominasse a rigidez doutrinária e a
santimônia teria tudo para ser chato, e este é sem dúvida o maior pecado para um autor como Chesterton.
Mas eu estava falando dos detalhes inúteis que antecedem o crime
a ser desvendado, e nesse aspecto a
leitura de Chesterton pode encantar
mesmo quem não gosta de histórias
policiais. Um jantar elegantíssimo
transcorre num clube de aristocratas. Vários membros do clube são
descritos, sem que a descrição sirva
para nada: nem mesmo estarão entre os suspeitos do crime.
Veja-se o caso de Mr. Audley, o rico homem público que era presidente do clube. "Nunca tinha feito nada
-nem sequer nada errado." Quanto
ao vice-presidente, o duque de
Chester, "visto de trás", parecia ser o
homem de que necessitava o Império Britânico. "Visto de frente, parecia um solteirão auto-indulgente e
bonachão com apartamentos no Albany: o que ele de fato era."
A maior surpresa, como se vê, está
na circunstância de que as coisas sejam mesmo como são. No jantar,
serve-se um esplêndido (?) pudim
de peixe. Os convivas "aproximaram-se dele tão gravemente como se
cada polegada do pudim custasse
tanto quanto o garfo de prata com
que era comido. E custava, pelo que
sei".
Perto dessas pequenas surpresas,
a surpresa final do conto perde bastante em importância. Tento tirar
daí uma conclusão religiosa, para
meu uso pessoal. O desfecho da minha história -a vida ou a morte
eternas- tende a ser pouco atraente. Melhor pensar nos mistérios
inexplicáveis -um cheiro de café,
uma virada no tempo, o contato de
uma lã entre os dedos- que acontecem todo dia.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Mineira "do sertão do sertão" é destaque no Tim com 1º CD solo Índice
|