São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Pesquisas e opiniões


No julgamento de Cristo, o povo preferiu libertar o criminoso e condenar o inocente

TEM GENTE que culpa as pesquisas eleitorais pela deformação do processo democrático. Elas são acusadas de influírem na opinião pública, em vez de serem meras aferidoras da mesmíssima opinião pública.
Um paradoxo, enfim, pois toda e qualquer pesquisa começa inocentemente por verificar a quantas andam as possibilidades de um candidato, de um produto, de uma causa.
A partir da primeira apuração, a mecânica se complica, pois cada resultado passa a influir no resultado seguinte -daí a inconsistência moral, ideológica ou prática dos candidatos, coisas e causas, que passam a valer aquilo que os outros pensam que valem.
Foi mais ou menos isso que serviu de base a um dos axiomas do existencialismo muito em voga nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Ninguém é nada e, sobretudo, ninguém é aquilo que julga que é, mas sim, aquilo que os outros julgam que ele é. Somos assim um mosaico das opiniões existentes sobre nós mesmos -o que contraria frontalmente os nossos anseios de legitimidade e autenticidade.
Mas deixemos a filosofia para lá e voltemos ao processo eleitoral. Já foi dito e é repetido com freqüência que a democracia é o pior sistema de política mas que não existe outro melhor. Democracia é o mal menor.
Dentro da democracia, o sistema de consulta popular também deve ser o pior, mas não existe outro até agora disponível. No fundo, é como nos programas de auditório: o melhor é eleito pela intensidade das palmas e dos gritos.
Temos o exemplo histórico do julgamento de Cristo. No domingo que antecedeu a sua morte, ele entrou triunfalmente em Jerusalém, foi o homem do dia, o personagem mais popular da cidade.
Quatro dias depois, sem que ele tivesse mudado substancialmente, ou seja, dentro daquilo que hoje chamaríamos de "mesmo contexto", ele foi colocado ao lado de um assassino e apresentado ao mesmo povo para a escolha fatal: Jesus ou Barrabás?
No domingo anterior, o povo louvou-o como filho de Davi, cantando-lhe os hosanas a que tinha direito. Quatro dias depois, o povo deveria libertar um criminoso e o filho de Davi ali estava, como criminoso, ao lado de um assassino.
A história é bastante conhecida: o povo preferiu libertar o assassino: "non hunc sed Barrabam!". Não este, mas Barrabás.
Não existiam, então, os institutos de pesquisa para detectarem os humores da opinião pública. Tampouco houve tempo útil para grandes campanhas a favor de um ou outro condenado. Nos misteriosos veios da opinião pública, a sorte estava lançada. Democraticamente, o povo preferiu libertar o criminoso e condenar o inocente. Com pequenas variantes, o fato se repete muitas vezes ao longo dos anos.
Por tudo isso, minha opinião pessoal nunca foi consultada pelos institutos de pesquisa. Volta e meia, um curioso qualquer me pergunta sobre isso ou aquilo, se acredito em disco voador, qual o botequim de minha preferência, se Lula vai mesmo para um terceiro mandato.
Procuro responder educadamente, nunca vi disco voador, não freqüento botequins e nem estou aí para saber se Lula vai ou não vai para novo mandato.
Acho que já contei a história do Joel Silveira. Estava assistindo a um jogo de futebol pela TV quando um pesquisador do Ibope bateu à sua porta e perguntou que canal ele estava vendo. Joel pediu um tempo, foi à sala, desligou o aparelho, voltou à porta e respondeu: "Nenhum!".
Sou uma espécie do "João Ninguém" cantado por Noel Rosa, que nunca teve opinião. Nelson Rodrigues dizia de certo escritor e jornalista famoso, já falecido, que, ao longo dos seus 70 anos de vida, nunca tivera uma opinião. Infelizmente, houve tempo em que caí na asneira de ter opiniões. Como tive catapora, sarampo e coqueluche. Bem ou mal, sobrevivi às chamadas doenças infantis, inclusive a de ter opinião.
Num julgamento famoso, o de Doca Street, o criminalista Evandro Lins e Silva lia um documento sobre o passado da vítima assassinada pelo amante. O advogado de defesa, Evaristo de Moraes Filho, o aparteou com sua voz poderosa: "Recuso a opinião de V. Exa.!". Evandro parou a leitura e com a calma que lhe era própria respondeu: "Nobre colega, não estou dando uma opinião. Estou lendo um laudo".


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