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Mônica Bergamo
bergamo@folhasp.com.br
As marcas roxas de Aline
Pedro Carrilho/Folha Imagem
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A atriz em intervalo das gravações, no Projac
A atriz Alinne Moraes, 27,
passou a semana confinada nos
estúdios da TV Globo, gravando os últimos capítulos da novela "Viver a Vida". Em um dos
intervalos, ela conversou com o
repórter Jairo Marques,
coordenador-assistente da
Agência Folha. Cadeirante, ele
é também autor do blog "Assim
Como Você", da Folha Online.
FOLHA- Havia uma expectativa de
que a sua personagem, Luciana, voltaria a andar.
ALINNE MORAES - As pessoas precisam entender que, se ela voltasse a andar, a gente iria frustrar milhares de pessoas com
deficiência porque elas perderiam a identificação com a alegria e a forma de encarar a vida
da personagem. Os cadeirantes
são felizes, namoram, trabalham, curtem a vida, têm família. Só precisam de condições
para fazer tudo isso.
FOLHA - As semelhanças dos gestos das mãos, dos ombros, caracterizados por você, impressionaram pela semelhança com os de um tetraplégico. Como foi seu aprendizado?
ALINNE - O Jayme [Monjardim,
diretor da novela] colocou para
trabalhar comigo fisioterapeutas, terapeutas e médicos. Mas
só quando conheci a Flávia
Cintra [jornalista que inspirou
Manoel Carlos] tive consciência de que cada pessoa com deficiência tem restrições físicas e
maneiras de agir diferentes.
Fui várias vezes à casa dela, em
SP. Ela me ensinou tudo: como
pentear os cabelos, como tomar banho, como tocar a cadeira de rodas. Ficamos extremamente ligadas. Mas teve um
momento em que tive de romper o cordão umbilical e encontrar a Luciana. Ela era modelo,
vaidosa, agitada. Tive de levar
isso em consideração para
compor os gestos.
FOLHA - Teve reflexos emocionais
na sua vida fazendo a personagem?
ALINNE - Não sabia que seria
tão difícil, tão denso. Quando a
Luciana sofreu o acidente, fiquei semanas gravando cenas
sobre uma prancha de imobilização, em hospitais, parada numa cama. Era angustiante, doloroso. Cheguei a ficar deprimida, com partes do corpo roxas.
Sou hiperativa e gravar com
aqueles aparelhos todos no
meu corpo [oxigênio, controlador de batimentos cardíacos]
me deixava tensa. Fiquei nervosa e exausta com um monte
de gente me tocando o tempo
todo, com o elenco ao redor me
dando força, com a dependência para fazer qualquer coisa.
Não me deixavam sozinha nunca, tinham dó de mim naquela
situação. E eu me sentia o Incrível Hulk, pronta para explodir (risos). Me relataram as
mesmas sensações que um cadeirante sofre após um trauma.
FOLHA - Mudou a sua forma de ver
um cadeirante?
ALINNE - Totalmente. Depois
que você experimenta um processo de superação, entende
que o mundo paralisou, que a
cabeça de algumas pessoas
também está paralisada por
não enxergarem que é preciso
ter acesso para todos, respeito
às diferenças. Essa porta da
acessibilidade tem de ser aberta com urgência. Há milhares
de adolescentes, de jovens vivendo em cadeiras de rodas que
não podem sair de casa porque
a calçada é ruim, porque não há
transporte de qualidade, porque não há rampas. Mas acredito que isso começou a mudar.
As barreiras mais difíceis enfrentadas por um deficiente,
porém, são as de atitude, de
aceitação. Essas vão demorar
mais para serem quebradas.
FOLHA - A sua personagem acabou
ganhando mais destaque do que a
Helena, da Taís Araújo.
ALINNE - Desde o começo a própria Taís me disse que a Luciana seria uma personagem incrível, que teria muita repercussão. E vibrou comigo. Somos
amigas. Ela viu primeiro do que
eu que o papel era sensacional.
Eu tinha medo de que fosse só
sofrimento, tristeza. Não imaginei que a Luciana seria tão feliz, que conquistaria tanto as
pessoas. Errei completamente.
FOLHA - A realidade financeira da
Luciana contrastou com a da maioria dos deficientes no Brasil.
ALINNE - Por mais que ela tenha
vivido uma realidade Pollyanna, ela mostrou que é possível
sair de casa, mostrou que existem equipamentos que podem
melhorar a qualidade de vida
das pessoas. Pouca gente sabia
que cadeirante poderia andar
de bicicleta, a handbike, que tinha táxi acessível, que tem tecnologia para facilitar o dia a dia.
A busca de informações na Globo por objetos que Luciana usava bateu recorde de ligações.
FOLHA - O ibope da novela não decolou como esperado.
ALINNE - A gente se sente realizada pela repercussão que o
trabalho teve, pela emoção que
causou nas nossas famílias e
em nós mesmos, pela história
da Luciana, que é inédita em
uma novela. Todo mundo fala
pra gente sobre as conquistas
que "Viver a Vida" levou para os
deficientes. Demos um grande
passo para a inclusão no país.
FOLHA - A Luciana foi seu personagem mais importante?
ALINNE - Com certeza. Tive um
crescimento pessoal muito
grande, no meu entendimento
sobre a vida, na generosidade
para levar o cotidiano. Aprendi
a valorizar coisas simples que a
gente deixa passar batido. É
emocionante quando eu vejo
uma criança com uma borboleta colada nas costas da cadeira
de rodas, imitando a "Luciana".
"Fiquei semanas
gravando cenas
sobre uma prancha
de imobilização, em
hospitais, parada
numa cama.
Cheguei a ficar
deprimida, com
partes do corpo
roxas"
ALINNE MORAES,
atriz
"Se ela [Luciana]
voltasse a andar, a
gente iria frustrar
milhares de pessoas
com deficiência
porque elas
perderiam a
identificação com a
alegria e a forma de
encarar a vida da
personagem"
IDEM
"Quando me ligaram
para dizer que a
novela abordaria o
tema, eu pensei:
"Meu Deus, isso vai
mudar o Brasil!".
Quando conheci o
Maneco, vi em seus
olhos o que estava
prestes a acontecer"
FLÁVIA CINTRA,
jornalista
A verdadeira Luciana
Inspiradora de Manoel Carlos, autor de "Viver a Vida", na
composição da personagem
Luciana, a jornalista santista
Flávia Cintra, 37, passou os últimos meses "ensinando" a
atriz Alinne Moraes a viver em
cadeira de rodas. A partir de hoje, ela será uma das primeiras
repórteres cadeirantes de uma
grande rede de televisão. Flávia
trabalhará no "Fantástico". Tetraplégica há vinte anos, depois
de um acidente de carro, ela ganhou destaque na mídia quando, como a Luciana da novela,
ficou grávida de gêmeos. Abaixo, um resumo da entrevista
que ela concedeu à Folha.
(JM)
FOLHA - Como surgiu o convite?
FLÁVIA CINTRA - Fui convidada
para participar de uma reportagem do "Fantástico" sobre os
recursos utilizados pela Luciana na novela que facilitam a vida dos tetraplégicos. Eu disse à
produtora que o programa deveria fazer mais reportagens
sobre o tema, que não poderia
parar na ficção. Ela disse que a
decisão era do diretor. Reagi
pedindo um horário com ele. O
Luiz Nascimento me recebeu,
me ouviu atentamente e me pediu que enviasse sugestões.
Nem sonhava em me tornar repórter. Uma semana depois, ele
me ligou com a proposta.
FOLHA - Fará apenas reportagens
sobre deficiência?
FLÁVIA - Posso trabalhar qualquer pauta. A presença de uma
repórter cadeirante num programa como o "Fantástico",
ainda que apresentando reportagens sobre outros assuntos, é
mais do que suficiente para
transmitir essa mensagem. É
uma conquista muito importante no aspecto coletivo. Tenho consciência da responsabilidade. Não temo críticas, mas é
claro que ficarei feliz se sentir
que fui aceita.
FOLHA - Como vai tirar a atenção
do público da cadeira de rodas?
FLÁVIA - Em geral, há um estranhamento diante de um cadeirante. Eu compreendo. Quem
não tem deficiência também
saiu perdendo com a falta de
participação dos deficientes na
sociedade. Deixou-se de aprender com a diferença e de experimentar formas positivas de se
relacionar. Aí a tendência é subestimar ou superestimar. Mas
me coloco como igual: não sou
"cadeirante jornalista", sou
uma profissional que, por acaso, está numa cadeira de rodas.
FOLHA - Qual é a sensação de ser a
inspiração da principal personagem
de uma novela?
FLÁVIA - Sou eternamente grata ao Manoel Carlos e ainda parece que estou sonhando.
Quando me ligaram da Globo
para dizer que a novela abordaria o tema, eu pensei: "Meu
Deus, isso vai mudar o Brasil!".
Quando conheci o Maneco, vi
em seus olhos o que estava
prestes a acontecer. Ele é a pessoa maior que já conheci na vida. A Luciana deu forma a um
sonho que parecia impossível.
FOLHA - As oficinas com a Alinne
Moraes funcionaram bem?
FLÁVIA - Nossos encontros
sempre foram intensos. Ela não
se limitou a copiar movimentos
possíveis. Ela mergulhou nas
emoções de cada fase desse
processo. Vimos filmes, fotos,
conversamos sobre cada sentimento, cada pensamento relacionado a preconceito, comportamento, sexualidade, dificuldades e possibilidades.
FOLHA - O ibope não foi o que se
esperava. O público não gostou de
ver uma cadeirante?
FLÁVIA - Os resultados são visíveis nas ruas. O olhar das pessoas mudou diante de um cadeirante. Projetos estão sendo
patrocinados, convênios estão
sendo firmados, o tema ganhou
força nas plataformas políticas,
a publicidade acordou para o
assunto. É o "efeito Luciana". A
novela nos economizou pelo
menos dez anos de trabalho.
FOLHA - A Luciana era rica, contava
com equipamentos de alta tecnologia. Você teve a mesma realidade?
FLÁVIA - Não, especialmente no
início. Morava em Santos na
época do acidente, não tinha
carro e vinha de ambulância a
SP para me reabilitar na AACD.
Mas foi importante que Luciana tivesse condições, pois assim a novela mostrou inúmeros
recursos que a maioria não tinha conhecimento nem da
existência. O acesso a esses recursos dependem muito mais
da informação prévia e da criatividade de cada pessoa para
adaptá-los à sua realidade. Mas
o importante foi mostrar a evolução emocional, psicológica da
Luciana, suas conquistas, seu
reencontro consigo mesma,
com a família, com o mundo.
Esse processo é humano e está
presente em todas as faixas sociais. Ela mostrou que os cadeirantes podem ter uma vida com
alegrias e tristezas, dificuldades e soluções, descobertas,
amor, filhos, realização pessoal,
afetiva e profissional.
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