São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

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Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

As marcas roxas de Aline

Pedro Carrilho/Folha Imagem
A atriz em intervalo das gravações, no Projac

A atriz Alinne Moraes, 27, passou a semana confinada nos estúdios da TV Globo, gravando os últimos capítulos da novela "Viver a Vida". Em um dos intervalos, ela conversou com o repórter Jairo Marques, coordenador-assistente da Agência Folha. Cadeirante, ele é também autor do blog "Assim Como Você", da Folha Online.

 

FOLHA- Havia uma expectativa de que a sua personagem, Luciana, voltaria a andar.
ALINNE MORAES -
As pessoas precisam entender que, se ela voltasse a andar, a gente iria frustrar milhares de pessoas com deficiência porque elas perderiam a identificação com a alegria e a forma de encarar a vida da personagem. Os cadeirantes são felizes, namoram, trabalham, curtem a vida, têm família. Só precisam de condições para fazer tudo isso.

FOLHA - As semelhanças dos gestos das mãos, dos ombros, caracterizados por você, impressionaram pela semelhança com os de um tetraplégico. Como foi seu aprendizado?
ALINNE -
O Jayme [Monjardim, diretor da novela] colocou para trabalhar comigo fisioterapeutas, terapeutas e médicos. Mas só quando conheci a Flávia Cintra [jornalista que inspirou Manoel Carlos] tive consciência de que cada pessoa com deficiência tem restrições físicas e maneiras de agir diferentes. Fui várias vezes à casa dela, em SP. Ela me ensinou tudo: como pentear os cabelos, como tomar banho, como tocar a cadeira de rodas. Ficamos extremamente ligadas. Mas teve um momento em que tive de romper o cordão umbilical e encontrar a Luciana. Ela era modelo, vaidosa, agitada. Tive de levar isso em consideração para compor os gestos.

FOLHA - Teve reflexos emocionais na sua vida fazendo a personagem?
ALINNE -
Não sabia que seria tão difícil, tão denso. Quando a Luciana sofreu o acidente, fiquei semanas gravando cenas sobre uma prancha de imobilização, em hospitais, parada numa cama. Era angustiante, doloroso. Cheguei a ficar deprimida, com partes do corpo roxas. Sou hiperativa e gravar com aqueles aparelhos todos no meu corpo [oxigênio, controlador de batimentos cardíacos] me deixava tensa. Fiquei nervosa e exausta com um monte de gente me tocando o tempo todo, com o elenco ao redor me dando força, com a dependência para fazer qualquer coisa. Não me deixavam sozinha nunca, tinham dó de mim naquela situação. E eu me sentia o Incrível Hulk, pronta para explodir (risos). Me relataram as mesmas sensações que um cadeirante sofre após um trauma.

FOLHA - Mudou a sua forma de ver um cadeirante?
ALINNE -
Totalmente. Depois que você experimenta um processo de superação, entende que o mundo paralisou, que a cabeça de algumas pessoas também está paralisada por não enxergarem que é preciso ter acesso para todos, respeito às diferenças. Essa porta da acessibilidade tem de ser aberta com urgência. Há milhares de adolescentes, de jovens vivendo em cadeiras de rodas que não podem sair de casa porque a calçada é ruim, porque não há transporte de qualidade, porque não há rampas. Mas acredito que isso começou a mudar. As barreiras mais difíceis enfrentadas por um deficiente, porém, são as de atitude, de aceitação. Essas vão demorar mais para serem quebradas.

FOLHA - A sua personagem acabou ganhando mais destaque do que a Helena, da Taís Araújo.
ALINNE -
Desde o começo a própria Taís me disse que a Luciana seria uma personagem incrível, que teria muita repercussão. E vibrou comigo. Somos amigas. Ela viu primeiro do que eu que o papel era sensacional. Eu tinha medo de que fosse só sofrimento, tristeza. Não imaginei que a Luciana seria tão feliz, que conquistaria tanto as pessoas. Errei completamente.

FOLHA - A realidade financeira da Luciana contrastou com a da maioria dos deficientes no Brasil.
ALINNE -
Por mais que ela tenha vivido uma realidade Pollyanna, ela mostrou que é possível sair de casa, mostrou que existem equipamentos que podem melhorar a qualidade de vida das pessoas. Pouca gente sabia que cadeirante poderia andar de bicicleta, a handbike, que tinha táxi acessível, que tem tecnologia para facilitar o dia a dia. A busca de informações na Globo por objetos que Luciana usava bateu recorde de ligações.

FOLHA - O ibope da novela não decolou como esperado.
ALINNE -
A gente se sente realizada pela repercussão que o trabalho teve, pela emoção que causou nas nossas famílias e em nós mesmos, pela história da Luciana, que é inédita em uma novela. Todo mundo fala pra gente sobre as conquistas que "Viver a Vida" levou para os deficientes. Demos um grande passo para a inclusão no país.

FOLHA - A Luciana foi seu personagem mais importante?
ALINNE -
Com certeza. Tive um crescimento pessoal muito grande, no meu entendimento sobre a vida, na generosidade para levar o cotidiano. Aprendi a valorizar coisas simples que a gente deixa passar batido. É emocionante quando eu vejo uma criança com uma borboleta colada nas costas da cadeira de rodas, imitando a "Luciana".

"Fiquei semanas gravando cenas sobre uma prancha de imobilização, em hospitais, parada numa cama. Cheguei a ficar deprimida, com partes do corpo roxas"
ALINNE MORAES, atriz

"Se ela [Luciana] voltasse a andar, a gente iria frustrar milhares de pessoas com deficiência porque elas perderiam a identificação com a alegria e a forma de encarar a vida da personagem"
IDEM

"Quando me ligaram para dizer que a novela abordaria o tema, eu pensei: "Meu Deus, isso vai mudar o Brasil!". Quando conheci o Maneco, vi em seus olhos o que estava prestes a acontecer"
FLÁVIA CINTRA, jornalista

A verdadeira Luciana

Inspiradora de Manoel Carlos, autor de "Viver a Vida", na composição da personagem Luciana, a jornalista santista Flávia Cintra, 37, passou os últimos meses "ensinando" a atriz Alinne Moraes a viver em cadeira de rodas. A partir de hoje, ela será uma das primeiras repórteres cadeirantes de uma grande rede de televisão. Flávia trabalhará no "Fantástico". Tetraplégica há vinte anos, depois de um acidente de carro, ela ganhou destaque na mídia quando, como a Luciana da novela, ficou grávida de gêmeos. Abaixo, um resumo da entrevista que ela concedeu à Folha. (JM)

 

FOLHA - Como surgiu o convite?
FLÁVIA CINTRA -
Fui convidada para participar de uma reportagem do "Fantástico" sobre os recursos utilizados pela Luciana na novela que facilitam a vida dos tetraplégicos. Eu disse à produtora que o programa deveria fazer mais reportagens sobre o tema, que não poderia parar na ficção. Ela disse que a decisão era do diretor. Reagi pedindo um horário com ele. O Luiz Nascimento me recebeu, me ouviu atentamente e me pediu que enviasse sugestões. Nem sonhava em me tornar repórter. Uma semana depois, ele me ligou com a proposta.

FOLHA - Fará apenas reportagens sobre deficiência?
FLÁVIA -
Posso trabalhar qualquer pauta. A presença de uma repórter cadeirante num programa como o "Fantástico", ainda que apresentando reportagens sobre outros assuntos, é mais do que suficiente para transmitir essa mensagem. É uma conquista muito importante no aspecto coletivo. Tenho consciência da responsabilidade. Não temo críticas, mas é claro que ficarei feliz se sentir que fui aceita.

FOLHA - Como vai tirar a atenção do público da cadeira de rodas?
FLÁVIA -
Em geral, há um estranhamento diante de um cadeirante. Eu compreendo. Quem não tem deficiência também saiu perdendo com a falta de participação dos deficientes na sociedade. Deixou-se de aprender com a diferença e de experimentar formas positivas de se relacionar. Aí a tendência é subestimar ou superestimar. Mas me coloco como igual: não sou "cadeirante jornalista", sou uma profissional que, por acaso, está numa cadeira de rodas.

FOLHA - Qual é a sensação de ser a inspiração da principal personagem de uma novela?
FLÁVIA -
Sou eternamente grata ao Manoel Carlos e ainda parece que estou sonhando. Quando me ligaram da Globo para dizer que a novela abordaria o tema, eu pensei: "Meu Deus, isso vai mudar o Brasil!". Quando conheci o Maneco, vi em seus olhos o que estava prestes a acontecer. Ele é a pessoa maior que já conheci na vida. A Luciana deu forma a um sonho que parecia impossível.

FOLHA - As oficinas com a Alinne Moraes funcionaram bem?
FLÁVIA -
Nossos encontros sempre foram intensos. Ela não se limitou a copiar movimentos possíveis. Ela mergulhou nas emoções de cada fase desse processo. Vimos filmes, fotos, conversamos sobre cada sentimento, cada pensamento relacionado a preconceito, comportamento, sexualidade, dificuldades e possibilidades.

FOLHA - O ibope não foi o que se esperava. O público não gostou de ver uma cadeirante?
FLÁVIA -
Os resultados são visíveis nas ruas. O olhar das pessoas mudou diante de um cadeirante. Projetos estão sendo patrocinados, convênios estão sendo firmados, o tema ganhou força nas plataformas políticas, a publicidade acordou para o assunto. É o "efeito Luciana". A novela nos economizou pelo menos dez anos de trabalho.

FOLHA - A Luciana era rica, contava com equipamentos de alta tecnologia. Você teve a mesma realidade?
FLÁVIA -
Não, especialmente no início. Morava em Santos na época do acidente, não tinha carro e vinha de ambulância a SP para me reabilitar na AACD. Mas foi importante que Luciana tivesse condições, pois assim a novela mostrou inúmeros recursos que a maioria não tinha conhecimento nem da existência. O acesso a esses recursos dependem muito mais da informação prévia e da criatividade de cada pessoa para adaptá-los à sua realidade. Mas o importante foi mostrar a evolução emocional, psicológica da Luciana, suas conquistas, seu reencontro consigo mesma, com a família, com o mundo. Esse processo é humano e está presente em todas as faixas sociais. Ela mostrou que os cadeirantes podem ter uma vida com alegrias e tristezas, dificuldades e soluções, descobertas, amor, filhos, realização pessoal, afetiva e profissional.


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