São Paulo, sexta, 16 de maio de 1997.



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Cinema chega a Itira com um século de atraso Filme sobre artesão que inventa máquina de movimento perpétuo transforma cidade mineira de 2.000 habitantes, no Vale do Jequitinhonha
Kenoma

João Quaresma/ Folha Imagem
Equipe em set de filmagem de "Kenoma", na cidade de Itira (MG)


CARLOS HENRIQUE SANTIAGO
da Agência Folha, em Itira (MG)

Mais de cem anos depois de sua invenção, o cinema finalmente chegou ao pobre povoado de Itira, no Vale do Jequitinhonha (MG).
Desde o mês passado, o povoado foi transformado em Kenoma, cidade fictícia onde se passa o primeiro longa-metragem da cineasta paulista Eliane Caffé, 35.
O filme, também intitulado "Kenoma", conta a história de um artesão, que, em uma região pobre e esquecida pelo tempo, inventa a máquina do movimento perpétuo, capaz de produzir a energia necessária ao seu funcionamento.
Como os espectadores dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, há cem anos, os moradores de Itira (a 653 km de Belo Horizonte) assistem com atenção e curiosidade ao desenrolar das filmagens.
Itira tem cerca de 2.000 habitantes. A maioria vive na zona rural onde não existe energia elétrica. Quase todos nunca entraram em uma sala de exibição e, muito menos, sabem como funciona um set de filmagens.
Empréstimos
Mesmo assim, eles têm colaborado para a realização do filme, emprestando objetos ou participando como figurantes. Às vezes, acabam passando na frente da câmera e atrapalham alguma cena.
"Eles pediram para eu vir e eu faço o que eles mandam. Se faço algo errado, peço desculpas", diz a figurante Isabel Pereira Siqueira, 73.
Ela e o marido Rozendo Siqueira, 86, que também participa como figurante em algumas cenas, nunca foram ao cinema, mas aguardam com ansiedade o filme ficar pronto.
"Eu me entusiasmo com as coisas que eu conheço. Na televisão, gosto de ver filme de vaqueiro, de boi bravo e que tem cavalo para amansar", diz Rozendo Siqueira, que foi vaqueiro.
A cafetina Maria das Dores Ribeiro, 57, a "Maria Cheirosa", faz uma ponta no filme e confessa que sempre foi fã de cinema, desde quando ainda trabalhava como prostituta em Araçuaí, município ao qual pertence Itira.
"Eu gostava mesmo era de 'seriais', tipo Tarzan, mas nem sempre podia ver, porque tinha de pedir licença à polícia para ir ao cinema", conta.
Miséria
Segundo o vice-prefeito de Araçuaí, José Antônio Martins Santana (PT), 42, a filmagem de "Kenoma" é o empreendimento em operação no município que emprega atualmente o maior número de moradores.
Com 34.379 habitantes, segundo o censo populacional do ano passado, Araçuaí tem pelo menos 3.100 famílias vivendo em condições de miséria, de acordo com o programa de cesta básica do Programa Solidariedade.
Segundo Santana, o desemprego é grande, e os homens com capacidade plena de trabalho saem, nesta época do ano, à procura de serviço nas plantações de cana do sul de Minas e de São Paulo.
"A realização do filme ajuda a retardar a ida desses trabalhadores para o corte de cana, fazendo com que eles fiquem junto de suas famílias", diz o vice-prefeito.
Segundo a produtora Van Fresnot, 41, estão sendo empregados, durante quatro meses de produção, 130 moradores do município por períodos variáveis de tempo.
A previsão é de que serão gastos, com os salários desse pessoal e o comércio local, R$ 300 mil do orçamento total do filme, que é de R$ 1,5 milhão.
Sem contar o que é deixado na cidade pelos 40 técnicos e atores que vieram de São Paulo.
Autoridades locais e produtores concordam, porém, que a indústria cinematográfica não vai resolver a pobreza do município.
"A filmagem é um acontecimento passageiro, mas pode despertar o interesse dos próprios moradores da cidade em resgatar o valor e a cultura de Itira, que estava muito esquecida, e até transformá-la em ponto turístico", comenta Santana.
Tecnologia
A realização de "Kenoma" envolve tecnologia de última geração da indústria do cinema e técnicas tradicionais dos artesãos do Vale do Jequitinhonha.
A máquina do movimento perpétuo, por exemplo, foi construída em um curral adaptado em conjunto por cenógrafos paulistas e carpinteiros da cidade, como Antônio da Costa Almeida, seu "Fuém", 52.
A cenógrafa Vera Hamburger, 33, que já trabalhou em dez longas-metragens, afirma que não esperava encontrar no Vale do Jequitinhonha tanta colaboração por parte dos artesãos locais.
"Foi uma surpresa. Eles (carpinteiros) têm um conhecimento profundo da profissão. Os encaixes da madeira, por exemplo, fazem parte do repertório local", afirma Hamburger.



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